Tempestade

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5 de Agosto de 2022

Terei eu imaginado tudo aquilo?, eu me perguntava ontem à noite, logo após tudo aquilo. Um delírio gerado pela minha instabilidade mental? Não. As sardinhas enlatadas e a água que trouxe estão aqui, o que significa que pelo menos parte do que aconteceu foi definitivamente, real. Só preciso voltar lá e averiguar o resto, sim preciso.
Depois de aplacar a fome e sede, segui os degraus para o primeiro andar e cruzei a casa até a porta do vizinho, estava prestes a sair quando ouvi um barulho diferente da chuva tamborilando no telhado, dentro de casa, vinha da parte da frente.
Diante disso, subitamente percebi que estava sem meus equipamentos e armas, continuavam sobre a cama onde os deixei. Havia algo de errado comigo, droga. Fique em silêncio esperando confirmar que o barulho tinha sido coisa da minha cabeça, mas não era, escutei de novo, como algo pesado caindo no chão, como o som do corpo do velho tombando no piso depois de eu abrir sua cabeça.
Parei no umbral da cozinha para a sala.
Havia uma pessoa ali. Era uma mancha escura estendida sobre o sofá, só conseguia vê-la direito quando um relâmpago rasgava a noite e afastava brevemente as sombras. Da posição em que eu estava, não pudia ver seu rosto, somente seus cabelos, muito negros. Então de repente, outro clarão inundou a casa, um trovão rugiu.
A figura estava sentada, me observando... Sus olhos tinham um azul fantasmagórico e estavam gravados em mim.
- Ei, parceiro. Disse ele, sorrindo.
Era um rapaz, tinha um rosto intenso, de expressões fortes. Devia ter a minha idade.
- Você... Olhei para a porta, estava trancada bloqueada como eu havia deixado, então eu mirei o revólver sobre a mesinha encostada nele. - Como entrou aqui?.
- Ah bem.. isso foi culpa sua, deixou aberturas demais. Ele se espreguiçou, reparei que usava minha jaqueta de couro. - Mas tenho que dizer, você parece em maus lençóis.
- Como?. Falei, me aproximando da arma.
- Bem pra começo de conversa, você está com um ar famélico, como um vira-lata de rua. Essa barba estranha e desconjuntada espalhada pelo seu rosto também não ajuda, se quer a minha opinião. Sem mencionar seu cheiro... Sera que os podres devoraram todo sabão desta casa?. Ele riu.
Ao chegar ao lado da mesinha, rapidamente peguei o revólver e apontei para o rapaz.
- Ei. Disse ele. - Isso é jeito de tratar os convidados?. Sorriu na escuridão.
- Não é meu convidado. Retruquei, engatilhando e roçando o dedo no gatilho. Minhas mãos tremiam.
Outro lampejo invadiu a sala, e a luz prateada fotografou a expressão fria e sombria do rapaz. Seus olhos esbugalhados pareciam investigar cada centímetro da minha alma.
- Larga logo isso. Falou, num tom meio cortante. - Sabe que não tem coragem de puxar o gatilho ate o final.
Ele estava certo. E, a final, o que ele poderia me tirar? Baixei a arma e a abandonei de volta sobre a mesinha.
- Quem é você?. Perguntei então.
- Pode me chamar de Levi.
- Levi, o que quer aqui?.
Ele deixou-se cair no sofá.
- Por acaso viu a chuva lá fora, parceiro? Cada pingo é como um maldito disparo de metralhadora... É bem provável que pela manhã todos os podres já estejam mortos, fuzilados pela mãe natureza. Deu uma risadinha. - Apesar que eles não sentem nada, então talvez o alvo dela seja na verdade, a gente, enfim sei lá o que estou falando... Está sozinho aqui?.
- Ah... sim.
- O que houve com as pessoas dos quadros nas paredes?. Perguntou fazendo gesto que abrangia toda a sala.
Meu olhar recaído em um dos retratos, no qual meus pais me levantavam pelas mãos enquanto eu, com 7 anos, agitava as pernas no ar, sorrindo.
Mordi o lábio inferior.
- Mortos, eu acho...
- Acha? Não tratou de averiguar?.
- E como eu faria isso?.
- E namorada? Reparei no seu anel.
Elice. Eu vinha mantendo-a afastada de meus pensamentos. Não conseguia mais suportar a sensação esmagadora de impotência quando pensava no que podia ter-lhe acontecido.
- Sim. Abaixei a cabeça, encarando o dedo no qual nosso anel de namoro se encontrava. - Ela era a melhor coisa na minha vida.
- Era? O que ouve com ela?.
- Eu.. Não sei, não sei! Como quer que eu saiba dessas coisas?.
Ele soltou um longo suspiro.
- Então resumindo, você inventou um monte de desculpas para poder se esconder aqui como um rato, sem considerar que talvez ela estivesse te esperando, acreditando que você a buscaria, acreditando que você estaria ao lado dela no pior momento das suas vidas, é isso? Parceiro, isso é desprezível.
O ódio e a vergonha me fizeram cerrar os dentes.
- O que... O que você sabe pra me falar isso!?. Gritei. - Como eu enfrentaria todas essas coisas lá fora? De que adiantaria eu morrer antes de chegar lá?.
Ele pôs-se de pé e veio em minha direção.
- Simples, você não deveria morrer. Passo após passo ele se aproximava, atravessando-me com seu olhar. - Deveria fazer tudo o que fosse necessário para se manter vivo, até encontrá-la. Só isso. Se realmente amasse, é o que teria feito, mas você não fez não é? Permaneceu aqui alimentando sua alma mesquinha, com desculpas áridas e egoístas enquanto caia cada vez mas fungo em suas manobras autodestrutivas.
  Levi parou em minha frente, poucos centímetros separando seu rosto do meu. Podia sentir a fúria borbulhando em seu interior.
 - Vergonhoso de fato, você odeia a situação mesmo, não é parceiro?
 - Eu.. Gaguejei. - O que você... Não...
 As lagrimas rolaram todas pelas minhas bochechas e gotejaram no casaco. A dor que eu havia ocupado numa gruta do coração agora sangrava no peito, corroendo-me como ácido.
 - Mas talvez não seja tarde demais. Falou, dando-me as costas.
 Um trovão reverberou atrás da casa e os vidros das janelas vibraram. Olhei para Levi, estava sentado, com os cotovelos apoiados nos joelhos, fitando-me.
 - Digo, para salva-la e compensar tudo isso.
 - Acha que ela ainda... Esta viva?.
 - Sinceramente, não sei. Disse. - Mas não é melhor ir até lá e descobrir ao invés de passar o resto dos seus dias se lamuriando, inventando desculpas que o façam estender por mais algumas semanas essa existência miserável? Já não há muito pelo que voltar neste mundo, não deixe que eles tomem seu coração também, deixe para trás tudo o que aconteceu até agora o passado não importa mais. Olhe para frente, para Elice... Nós dois, juntos, vamos encontrá-la, nem que seja a ultima coisa que façamos, acredite em mim parceiro. Ele estendeu-me a mão. Apertei-a, concordando lentamente com a cabeça enquanto, como uma rosa desabrochando na escuridão, eu senti renascer no peito a esperança e o desejo de sobreviver.
 Naquela noite, ele dormiu no sofá. Na manhã seguinte, descutimos o que fazer. Eu e Levi decidimos aguardar um ou dois dias, até eu recuperar as forças, para então partimos para a casa de Elice. Ela fica cerca de uma hora de carro daqui, o que significa que não sera um passeio no parque, muito pelo contrario.
 Estamos planejando encontrar um carro e seguir pelas ruas secundárias tendo em vista os terríveis acidentes espalhados pelas vias principais, assim aos poucos nosso plano vai exibindo seus contornos. Creio que em pouco tempo estaremos prontos para darmos o fora daqui. Levarei comigo este caderno e continuarei anotando tudo o que acontecer. Não sei quando foi, mais, a partir de algum momento, o hábito de escrever aqui se tornou parte essencial dos meus dias, tornou-se de fato uma necessidade..
 Não sei se isso é bom ou não.

Regra.14
Sem vínculos: confie sempre em você mesmo. Sempre é mais difícil sobreviver quando se tem vínculos... Ah e mantenha os idiotas com você: enquanto eles perguntam o que está havendo, você já estará bem longe dali.

(Nesse caso eu sou o idiota -- Mais não seja um)

(Volte lá na regra 8 e 9)

Diário De Um Sobrevivente - ConcluídoOnde histórias criam vida. Descubra agora