Realidade

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26 de julho de 2022

Ontem minha noite foi um verdadeiro inferno, havia gastado o meu último toco de vela da noite retrasada, lendo, e como não ouso acender as luzes, parte por medo de chamar atenção (imagine a única casa com eletricidade no raio de 5km) parte por temer sobrecarregar o gerador. Ontem a partir das sete tive que ficar no escuro, você não tem ideia do que é capaz de gerar a combinação entre escuridão negra como óleo e silêncio sepulcral.
Deitado em minha cama com absoluto negrume oco ao meu redor, eu parecia ser o único ser humano no mundo. Não havia diferença entre estar com os olhos abertos e fechados, e isso gerou uma agonia em mim, eu estava realmente ali? aquilo tudo era de fato real? Essas perguntas juntaram-se ao meu tormento enquanto eu me revirava de um lado para o outro sobre os lençóis. O ar tornou-se rarefeito e quente e quanto mais eu respirava mais me sentia asfixiado. Não consegui suportar mais, sentei-me na cama, abri a janela e me sentei no batente, olhando para o céu.
Um milhão de estrelas me saudaram e varreram para longe a escuridão pegajosa. Lá em cima tudo estava em paz como sempre esteve, como sempre estaria, até dali bilhões de anos quando sois começariam a morrer e o universo sucumbiria a entropia, mas até lá eu já seria poeira, todos seríamos. Permanecer ali, observando o cintilar oscilante das estrelas, até a areia do sono cobrir meus olhos e eu voltar para cama.
Não dormi muito, assim que o sol atravessou os vidros da janela me levantei, dos lençóis encharcado de suor e fui tomar banho apesar do frio de julho. Os pesadelos e a tensão acumulada frequentemente me fazem suar a noite, de modo que sempre me lavar após acordar. Hoje não foi diferente, sempre fui adepto a longos banhos quentes e vaporosos, mas esse é um luxo ao qual não posso mais me entregar. Como já disse estou sem água, de modo que meu banho consiste em esfregar uma toalha úmida pelo corpo e é isso.
Depois, comi alguma coisa e verifiquei o quintal, à procura de alguma mensagem de Joana. Não achei nada. Algo estava errado, precisava ir até lá. Voltei para dentro e me arrumei, jaqueta de couro, capacete martelo. Então fui até o segundo andar e investiguei a rua, completamente vazia, as duas mulheres desapareceram no meio da noite, que estejam bem longe.
Desci e sai, apesar de dentro de casa estár fresco lá fora o sol torrava, enquanto brigava com ferrolho eu segurava a ânsia de vômito de olhar e sentir o cheiro do corpo caído na calçada, já estava em decomposição avançada e os vermes brancos e gordos corriam pela cabeça podre e destroçada, preciso dar um jeito nessa coisa pensei regurgitando.
Ao pisar na calçada, olhei para os dois lados e não vi sequer uma figura errante. Algo deve tê-los atraído durante a noite. Avancei até o outro lado da rua, destranquei o portão e entrei no pátio, fechando-o atrás de mim.
No caminho até a porta, avistei a pedra que atirara ontem, largada sobre a grama alta. Me aproximei e bati na porta com os nós nos dedos, ela se deu alguns centímetros e reparei que estava aberta, empurrei-a permitindo que o sol ilumina-se o corredor de madeira até uma parede pintada de verde ao fundo, pegadas vermelhas seguirão até o fim deste corredor e entravam à direita, levantei o martelo e segui em frente ao fazer a curva para o próximo cômodo parei na soleira e os vi.
O homem, o pai dela, estava deitado no sofá, com a perna enrolada por uma gaze ensanguentada. Tinha o rosto coberto por uma barba desgrenhada e as maçãs do rosto sobressalentes. Suas tripas derramavam-se da barriga e manchavam o tapete quadriculado que cobria o chão da sala enquanto a língua como um bicho morto escapava dos labios e pendia frouxa, apontando para garota ajoelhada diante dele. Joana vestia seu casaco felpudo, virou-se para mim. Uma sacola com logotipo da farmácia litoral, jazia ao lado dela, repleta de medicamentos.
Ela me olhou e rangeu os dentes. Seus cabelos curtos permitiam ver claramente o ferimento no seu pescoço, quatro finas linhas vermelhas, um simples arranhão que acabará com sua vida e a obrigara a dilacerar o próprio pai.
Seus olhos estavam cobertos por uma película de ódio, e quando avançou em minha direção um sangue negro escorreu pelos seus lábios.
Devo ter reagido por puro terror, pois minha mente vagava longe perdida numa tristeza e desespero completo. O martelo acertou-a no queixo com um golpe pesado, o choque reverberou nos ossos do meu pulso e antebraço, pulei para o lado oposto em que a arremessei.
Com se nada tivesse acontecido, a coisa que um dia fora Joana veio de novo, seu maxilar deslocado pingando sangue. Podia ouvir seus berros furiosos atrás do capacete. Segurei a ferramenta com as duas mãos, levantei-a sobre a cabeça e despejei todo meu desespero no martelo.
O metal enterrou-se acima da orelha dela com sonoro crack.. Que me embrulhou o estômago. Sangue salpicou minha viseira, Joana tombou para o lado, sobre a mesinha de centro morta.
Olhei para minhas mãos e vi o sangue, misturado com algumas fios de cabelo dela. Com a cabeça vazia como se aquilo fosse apenas alguns cenário ensaiado num planeta distante, esfreguei os dedos sentindo a textura daquele líquido espesso e pegajoso. Uma risada nervosa escapou de meus lábios, em seguida, me agachei sobre Joana e, com ruído aquoso, puxei o martelo do buraco aberto em sua cabeça.
Não me lembro do resto, de ter saido de lá e ter voltado para casa, só sei que quando minha consciência retornou, eu estava diante da torneira do banheiro, girando e girando o registro, esperando por uma gota de água que jamais viria me purificar.
  Enquanto escrevia isso, diversas vezes as palavras na folha foram distorcidas pela minhas lagrimas. A dor é tão absurda, tão ridicula... Assim que encontro uma amiga, algo como isso acontece? De que forma isso é justo? Que brincadeira diabolica é essa? Ela só estava tentando ajudar o pai, só isso... Se eu tivesse apenas ajudo ela... Se eu não estivesse tão concentrado no meu próprio bem estar.. Ah, de que importa isso agora? Ela esta morta. Todos estão mortos, e agora aqui estou, o unico que resta, soterrado na escuridão acompanhado de uma garrafa de vodka e vozes berrando para eu fazer a besteira.
Bem, as palavras começam a ficar embaralhadas, vou terminar essa garrafa e procurar outra, qualquer coisa que me ajude a passar por essa noite. Não sei o que sera do amanhã, mas isso não me importa mais.
Essa é a realidade, afinal.

Sem mais delongas ...

Regra.10
Seja implacável: quando alguém conhecido/amado por você se transformar, não tenha piedade: de dois golpes ( voltei na regra 5 ). Armas são para caçar, não para matar zumbis: na hora do perreio, ninguém vai parar para carregar a arma. Tenha sempre consigo um taco de críquete, de baseball, uma pá que seja, (no meu casa um martelo). Melhor garantir do que não conseguir remediar.

Diário De Um Sobrevivente - ConcluídoOnde histórias criam vida. Descubra agora