Desordem Interna

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4 de agosto de 2022

Voltei, estou vivo, o que quer que isso signifique... Enfim, eis o que aconteceu:

Após chegar ao primeiro andar, resolvi ligar a tv. Uma pequena parte de mim nutria a esperança de que tudo havia acabado, e quando a tv ligasse, todos os canais estariam exibindo imagens de bravos soldados eliminando todos os monstros e se preparando para resgatar os sobreviventes. Com esse delírio na cabeça, apertei o botão.
Era tudo o que a tv emitia, um chiado ensurdecedor. Soltei uma risada amarga. Então desliguei-a e me preparei para sair.
A jaqueta parecia um pouco mais folgada desde a primeira vez que a coloquei. Deveria ser pela perca de peso aparente. Ótimo, menos carne prós malditos. Limpei o sangue de Joana da viseira do capacete e o enfiei na cabeça, então peguei o revolver e o martelo e sai.
A grama do pátio estava alta e muito verde, afogando o caminho de cascalho até o portão. No céu, nuvens escuras como carvão queimado, aglomeravam-se sobre a cidade, ameaçadoras. Ocasionalmente, um relâmpago silencioso iluminava o horizonte com um flash. Um vento gelado serpenteava pelas casas e agitava ferozmente a árvore do vizinho ao lado, suas folhas roçando umas nas outras com som perturbador naquele silêncio. Levantei a gola da jaqueta e dei a volta na casa.
O muro de trás, que nos separava de vizinho, era de tijolos nus e descascados, prestes a desabarem. Tinha a minha altura. Cogitei salta-lo, só que o mas provável é que ele desabasse comigo em cima. Afinal, reuni alguma força e chutei-o no ponto mas vulnerável, no mesmo instante fui tomado pela tontura, mas não desiste, e após duas tentativas ele começou a ceder, corri para trás e o observei oscilando até tombar para os fundo do vizinho. Os tijolos quebrados espalharam-se pelo mato com um som oco e eu pulei por cima deles, seguindo adiante.
Segurando o revolver, atravessei a horta esmagada, debaixo dos pés restos de repolhos podres, até chegar a porta dos fundos da casa. Ela tinha só um andar, pintado de verde-oliva desbotado pelo tempo, e no conjunto era bem simples.
Ao segurar a maçaneta, subitamente me veio na cabeça a imagem do velho, a careca enrugada e vermelha, o nariz torto como um galho de árvore, o imaginei transformado em uma dessas coisas lá dentro me esperando.
O suor frio delineou a curva de minhas costas, contudo a porta estava trancada, e isso me irritou, me irritou tanto que cerrei os dentes e bati com força na porta usando o cabo da arma.
- Abre isso, desgraçado!. Berrei descontrolado, enquanto uma garoa começava a cair do céu.
Então reparei na janela ao lado num relance, vi as cortinas brancas se movendo, escutei passos lá dentro. Então o desgraçado estava lá dentro, o velho iria ver, iria pagar por isso.
Imediatamente puxei o martelo do cinto e acertei a janela, o vidro explodiu em mil pedaços para dentro e o vento soprou fazendo as cortinas se agitarem para fora como cobras pálidas no ar. Meti a mão entre o cacos e levantei o trinco sem se quer investigar mergulhei dentro daquela boca negra.
O lugar estava escuro como um poço. A poeira era tão densa que num surto de tosse fui forçado a abrir a porta e deixar o vento circular um pouco, a luz então entrou e pude distinguir os móveis ao meu redor, geladeira, fogão, micro-ondas, e armários estavam reunidos pelas paredes.
Como um processo, fui de porta em porta, abrindo-as a procura de comida, a procura de qualquer coisa, mas não encontrei sequer um grão de arroz. Nada além de teias de aranha e as próprios aranhas, gordas e satisfeitas.
- Não não não não não não não ...
A garoa lá fora transformava-se numa chuva furiosa, martelando o telhado acompanhada de terríveis trovões que fazem vibrar a casa inteira. Desesperado corri até a geladeira puxei a porta, vazia, a não ser por uma caixa de leite aberta, lambendo os lábios agarrei-a e apertei até o leite encher minha boca. De súbito, a caixa escapou de meus dedos enquanto eu caía de quarto vomitando. Estava coalhado, azedo e fedorento.
Concentrado nisso, só o ouvido tarde demais.
O velho emergiu das sombras, pálido e raivoso em seu pijama cinzento, e atirou-se direto na minha direção. Só tive tempo de me jogar para trás, batendo com as costas na geladeira e me protegendo com a mão. Ele mordeu-a, apertando com uma força desumanal apertando os maxilares até rasgar a carne da palma. Gritei dentro do capacete. Com lágrimas nos olhos, tateei o chão usando a mão livre, até meus dedos tocarem no metal frio do revolver.

Bang

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Diário De Um Sobrevivente - ConcluídoOnde histórias criam vida. Descubra agora