❝ colorir ❞

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[ conto ]

Por todas as cores que tenho


Abri os braços, deixando-os bem estendidos, suspensos no ar.

A brisa gelada bateu em minha pele exposta e eu fechei os olhos.

Ao longe, era possível ouvir-se os ruídos dos carros em movimento; ao redor, ouvir-se o farfalhar das árvores e o cantarolar dos pássaros. Senti meus pelos eriçarem-se com o estrondo de um trovão raivoso bem acima da ponte onde eu me encontrava. Minhas pálpebras fechadas encontraram a claridade por alguns milésimos de segundos quando um relâmpago silencioso se propagou pelo céu. Mexi as pontas dos meus dedos e desejei poder abraçar todo o globo terrestre com aquele simples ato, sentindo os músculos dos meus ombros começarem a dormir.

A dormência é incômoda para qualquer um, menos para alguém como eu.

"Está na hora", sussurrei em meus pensamentos, "talvez, as cores da minha desistência possam colorir o meu túmulo".

Dei um passo decidido até a beirada da ponte e senti a barreira encostar-se na minha barriga, gelada, irremediável. Com um movimento certeiro, sem maiores impedimentos, subi em sua borda. Olhar para o horizonte escurecido pela sombra das nuvens carregadas era bem melhor do que mirar o asfalto impenetrável e gélido que me esperava lá embaixo.

"É o que as pessoas coloridas precisam fazer para manterem-se vivas".

Em um mundo onde todos são monocromáticos, as cores são desvalorizadas.

— É realmente uma bela vista. — Uma voz masculina descontraída soou por detrás de mim, fazendo-me estagnar no lugar. — Eu subiria aí com você se não estivesse prestes a chover.

Com os olhos arregalados, segurando em uma das barras de ferro que sustentavam a ponte, virei-me lentamente para encará-lo.

Ele era cinza, com muitas partes em branco.

— Está frio — continuou o jovem bem vestido, com as mãos nos bolsos da calça social e a gravata esvoaçando com o vento —, eu deveria te oferecer o meu casaco, mas acabei esquecendo-o dentro do carro.

— Não estou com frio. — Consegui rebater, realmente intrigada pela presença dele.

O jovem caminhou a passos tranquilos até a barreira desgastada, parando bem ao meu lado, seus olhos na altura dos meus joelhos. Espalmou as duas mãos sobre a borda árida e ficou encarando a paisagem cinzenta a nossa frente.

— O que está fazendo? — Perguntei, ainda sem tirar os olhos de cima dele.

— O que parece que estou fazendo? — Ele não olhou para mim, mas um sorriso discreto brincou no canto de seus lábios. — Eu estou salvando você, claro.

Bufei indignada, era impossível alguém me salvar.

— E como pretende fazer isso? — A pergunta escapou de maneira ríspida da minha boca. — Você é um em um milhão dentre todos aqueles que desejam a minha morte.

— Eu tenho um plano — os fios dos seus cabelos eram tão lisos que não paravam de dançar sobre a sua cabeça —, pensei muito sobre o assunto e acabei chegando a uma conclusão assim que te vi aqui.

Permaneci em silêncio, esperando que ele se explicasse.

Os trovões diminuíram o espaço de tempo entre um e outro, indicando que a tempestade estava cada vez mais próxima.

— Você não consegue ver agora e, muito provavelmente, não vai acreditar em mim, mas eu já fui uma pessoa como você. — Vendo que eu estava prestando atenção, prosseguiu. — Eu já fui uma pessoa colorida. Já fui destemido, sonhador, aventureiro, apaixonado... — suspirou cansado — ...eu já vi o cinza deste mundo com olhos totalmente esperançosos.

Um nó formou-se em minha garganta, a pele exposta dos meus braços e pernas estavam congeladas e eu não sentia nada. Ainda podia ver as cores das árvores, de alguns anúncios, placas, comércios e lojas resistirem ao breu que a tempestade estava nos impondo, mas o jovem ao meu lado estava misturando-se facilmente aqueles tons mórbidos ao nosso redor.

Sentei-me, deixando as minhas pernas penduradas sobre a barreira.

— E o que aconteceu...?

Ele conectou os nossos olhares pela primeira vez e eu engoli em seco.

— Fui obrigado a seguir os caras de preto. — Deu de ombros.

Voltei a olhar para o horizonte, dando-me conta do rumo em que eu estava tomando. Minhas roupas eram coloridas, meus objetos de valor eram coloridos, meu modo de ver todas as coisas era colorido... Eu nasci sendo uma pessoa colorida.

— Eu sinto que está faltando algo dentro de mim todos os dias. — Revelou o jovem, brincando com os dedos, olhando para baixo. — Eu também já estive bem aqui nesta ponte, neste mesmo lugar, sentindo o mesmo peso que você está sustentando sobre os seus ombros. Eu também já me senti assim, com o fardo das minhas cores massacrando o meu interior. Então, eu falhei, fui levado para um ambulatório e, aos poucos, fui sendo padronizado. Hoje, eu só enxergo o cinza, o preto e o branco. Nem mesmo as cores frias eu consigo visualizar.

Meu peito pareceu estar comprimindo-se sob minhas roupas, o medo começou a cutucar-me, senti um pingo pesado pousar no meu nariz, outro na minha testa e, em pouco tempo, estávamos sendo envolvidos pela chuva.

— Diga-me... — ele balbuciou, ignorando o barulho torrencial ao nosso redor. — As árvores ainda têm o mesmo tom de verde?

Acenei positivamente com a cabeça e ele sorriu, seus olhos estavam marejados.

— E o céu ainda fica muito azul depois de uma tempestade. — Retribuí o seu sorriso e ficamos nos encarando por alguns segundos, os pingos da chuva escorrendo por nossos rostos, fazendo as lágrimas misturarem-se com a água da chuva. — Afinal, qual é o seu plano?

O jovem apagado passou as mãos nos fios molhados e acabou retirando a gravata encharcada pelo colarinho. Seus olhos assumiram um tom fraco de vermelho, a primeira cor que surgiu daquele olhar nublado.

Podia ser coisa da minha imaginação, mas eu jurava que ele sabia o momento exato em que a chuva cessaria e as nuvens voariam para bem longe, deixando o céu iluminado outra vez. Talvez, a rispidez e a pressa com que os pingos começaram a cair sobre nós tivesse sido o alarme crucial para ele. De qualquer forma, o tempo parecia estar a nosso favor.

— Não se entregue. — Ele sentenciou, sorrindo abertamente quando notou a claridade voltando, junto com um sorriso meu. — Mas, também, não permaneça como está. Eu me rebelei, falhei, perdi. Você está se rendendo, desistindo, perdendo.

Franzi o cenho quando ele, inesperadamente, estendeu a mão para me ajudar a descer da barreira. Eu aceitei sua ajuda. Aceitei sentir a firmeza do chão sob os meus pés, enchendo-me de segurança.

Olhei em volta, admirada, encantada, como se estivesse enxergando tudo pela primeira vez. O céu estava mesmo pintado com um azul muito bonito. Cada construção parecia reluzir, flamejar, e cada folha aparentava estar mais verde. O amarelo vivo dos raios solares fazia tudo entrar em harmonia.

Elas estavam todas ali, ainda fazendo morada dentro de mim.

— Você tem as cores — ele tocou o dedo indicador em meu peito, sinalizando o lugar do coração — e eu tenho os materiais artísticos. — Apontou para a sua cabeça, sinalizando o lugar do cérebro. — Todos os conflitos que temos, sejam eles racionais ou emocionais, são causados pela falta de equilíbrio.

Ele tinha razão, tudo era sempre exagerado demais.

Tudo era preto no branco.

Então, surgiu um arco-íris.

— Eu posso te ajudar a combinar as cores... — prosseguiu, sério — ...e você pode me ajudar a colorir algumas ideias.

Aquela era a melhor sensação de liberdade que já senti e, por todas as cores que eu tinha, decidi pegar os meus pincéis, transformando o mundo em uma grande tela artística.

PÉTALAS SOLTASOnde histórias criam vida. Descubra agora