O copo americano com a cerveja trincando de gelada era o que menos chamava a atenção na mesa mais afastada da dupla que cantava no centro do bar localizado em alguma parte do centro da cidade. A figura sentada na mesa sozinha,entoava animadamente cada música tocada pela dupla,arrancando risos de quem estava ao redor e oferecendo um show a parte para o pessoal que curtia mais uma noite de clima ameno.
Era noite de sertanejo,sertanejo daqueles que te colocam pra baixo,chorando feito bezerro recém desmamado. As letras pareciam seguir a mesma linha de raciocínio sempre,traição,término,sofrimento,superação,mais sofrimento. Como alguém podia cantar isso a plenos pulmões sorrindo? Definitivamente devia ser efeito do álcool.
- 4, 5 doses não é muito não,depende do tamanho da decepção! - o copo foi erguido mais uma vez enquanto a morena cantava sorrindo de forma inexplicável - Se desse pra sentir a dor que eu tô sentindo,vai ver que meu estado é crítico!
Realmente. O rubor na face da morena,as duas garrafas vazias no balde com gelo e os olhos brilhando,definitivamente mostravam que ali estava alguém em estado crítico,afinal quem se empolgaria TANTO cantando uma letra dessas?
- Então deixa eu beber que é pra anestesiar - as mãos balançaram no ar de forma teatral,tomando todo cuidado pra não derramar uma gota de álcool que fosse - Do jeito que o meu coração tá até se tocar funk eu vou chorar! Êta sofrencia da boaaa!
Um grupo próximo a garota irrompeu em risadas , ela certamente era mais interessante de observar que a pobre dupla que seguia tocando. Olhando bem,ela era um tanto quanto intrigante. Os cabelos longos e levemente enrolados contrastavam com a pele alva,o olhar brilhava visivelmente sob efeito de álcool e pareciam desafiar quem fosse a se aproximar. Qual era o mistério da garota afinal?
O garçom interrompeu seus pensamentos mas sua mente estava tão presa à figura a frente que mal registrou as palavras que saíram de sua boca.
-Quero uma coca com gelo e limão e mais uma garrafa pra figura sofredora ali na frente,ela parece precisar de um apoio líquido.
- Mais apoio moça? - o rapaz riu com um tom de voz divertido - essa ai já tá cantando assim tem quase uma hora,dá corda não.
- Ela tá bebendo sozinha ai desde que chegou ? - o interesse repentino não parecia ter fim.
- Desde que chegou - riscou a comanda e guardou o bloco de notas - já é figurinha carimbada daqui, moça boa,meio maluquinha mas uma simpatia.
- Não parece muito...triste.
- Vai saber né? Mainha sempre me disse que cada um sofre de um jeito,vai ver esse é o dela. Dá licença viu?O celular vibrou com uma mensagem da pessoa que esperava a semana inteira pra ver,relutante tirou os olhos da garota e sentiu todo seu ânimo minado com uma simples frase “Não vou poder te ver hoje,desculpa mas assim que der te aviso.”
Outra vez.A quinta vez em menos de uma semana.
Sentiu os olhos encherem d’água de forma instantânea,o ar pareceu fugir de seus pulmões,as mãos gelaram e coração pareceu descer de seu lugar até o fundo de seu estômago. “Não chore.Não chore”. Repetiu o mantra tentando se apegar ao que ainda restava de dignidade em si.- A parte que eu mais gosto - a voz surpreendentemente melodiosa tirou a outra do inicio da crise de pânico - Ai eu vou sofrer,sofrendo eu vou chorar,chorando eu vou beber,bebendo eu vou ligar...Ela não vai atender.
A garrafa de cerveja colocada no centro da mesa,a cadeira arrastada e a figura que sentou ao seu lado deixaram a garota sem resposta. O garçom voltou colocando a coca com gelo e limão e um outrocopo vazio, saiu sem falar palavra.
A morena ajeitou-se em sua frente sorrindo de forma estranhamente calorosa e receptiva,causando uma mistura de sentimentos que não sabia descrever.- Me perdoa a audácia mas achei que o mínimo que podia fazer era oferecer minha humilde companhia como agradecimento pela gentileza - servindo a cerveja sem tirar os olhos da outra - prometo não cantar tão alto se você me falar o seu nome,mas sem pressão.
- Eu não bebo.
- Eu também não - o sorriso de lado revelou a insinuação de uma “covinha” - não em dias de semana.- Obrigado,eu acho.
- Eu quem devo agradecer aqui , licencinha oh - sentiu uma de suas lágrimas ser amparada pela mão gelada devido a garrafa - não podia deixar escorrer essa aqui,depois que a primeira cai as outras vem fácil e não queremos isso.
- Como você sabe? - apesar do coração acelerado se sentiu levemente incomodada pelo avanço.
- Digamos que que eu tenho experiência nesse quesito… Não sei seu nome,não sei o motivo do seu choro,o que eu sei é que ninguém senta na mesa comigo pra beber e ouvir sertanejo chorando,vou trazer teu sorriso de volta em duas doses ou seu dinheiro de volta!Incredulidade definiria bem o que sentia. Nunca tivera seu espaço pessoal invadido com tanta facilidade e despreocupação,pior que isso era o fato de não se importar. Decidiu não questionar,pela primeira vez na vida e lá pelas tantas da madrugada,ao saírem do bar rindo feito adolescentes,se deu conta de que a morena havia conseguido trazer sim seu sorriso de volta e o mais impressionante,antes das duas doses.
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Fragmentos
SaggisticaPáginas rasgadas de um caderno chamado vida. Sobre o tudo e o nada. O caos puro da linha de raciocínio de alguém que busca conciliar sentimento e razão em um mundo acinzentado.