Prólogo - Relatos da Vida

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"Era uma vez uma garota chamada Victória, ela vivia exalando felicidade...

Besteira! Assim deveria iniciar uma história: com um começo feliz. Todas as histórias clássicas de amor começavam assim, com um "Era Uma Vez", a minha não chegava nem perto disso, estava mais associada a história de terror.

Vamos aos fatos que mudaram completamente, catastroficamente, a minha vida.

Perdi a virgindade aos 16 anos. Já tinha sido expulsa de casa, e não, não foi natural como deveria ser. Mas meu conhecimento sobre o assunto veio aos treze anos.

Desde novinha eu atraia olhares mal intencionados. Mas eu tinha aquele jeito menina-moleca, e não fazia ideia da atenção que eu detinha. Não estou culpando isso, até porque ninguém tem que se envolver em um véu para passar despercebido, as pessoas que devem parar te ser doentias.

Até hoje lembro de mamãe. Menina, volta aqui! Victória, largue essa bola, e venha tomar banho! Victória, isso não é brincadeira para meninas, onde estão suas barbies? Mamãe era mais ou menos assim, sempre me tirando do que eu mais gostava, ela amava pentear o meu cabelo, o que em poucos segundos estava armado e sujo. Mas ela me amava.

Amava.

Quem diria que minha vida mudaria na manhã de véspera de Natal, época que eu mais gostava. Mamãe havia pedido para eu ir até a casa de tia Marli que não ficava mais que duas quadras da nossa; buscar uma assadeira de bolo que ela faria especialmente para mim, a única criatura no mundo que comia bolo de milho fora de época – se é que precisa de época para fazer o que gosta, só estou ressaltando porque todos diziam que mamãe estava me estragando atendendo meus caprichos.

Cheguei na casa de tia Marli, a porta encontrava-se meio aberta, entrei. Chamei por ela, não houve resposta.

Fui surpreendida por Eugênio, o seu marido. Ele estava com a calça abaixada. Na tevê um homem e uma mulher cometiam o ato sexual. Ele se estimulava enquanto mantinha os olhos vidrados.

Num relance estonteante fui surpreendida por ele, me encarando feito um leão faminto dentro da jaula. Não sei o que passou na sua cabeça, mas a minha gritava exigente aos meus pés para correrem. Eu estava paralisada. Acho que vendo aquela cena de duas pessoas se relacionando, pela primeira vez, tenha chamado a minha atenção, uma curiosidade que se instalou.

Eu juro que tentei correr, mas o vento fechou a porta antes mesmo de conseguir passar. Maldito vento.

Ali eu descobri que minha vida mudaria.

Uma mão envolveu meu braço. Fiquei assustada, o sexo dele encontrava-se a minha frente, ele me molestou. Meu corpo estava imobilizado. Ele apertou meu maxilar, eu cedi, relutantemente. Ele forçou-me a colocar a boca ali... Senti-me invadida, minha ingenuidade foi destroçada por um homem escrupuloso, miserável, pedi que os sete invernos o engolisse naquele momento, que a mão justiceira de Deus o amaldiçoasse, maldito seja ele, mas nada aconteceu.

Violentamente, ele grudou o meu pescoço e me aterrou na porta, me abusando. Meus braços, mãos; eram pequenos, nada que eu fizesse adiantaria. Achei que fosse morrer. Quantas vezes eu havia visto nos jornais, corriqueiramente, que alguma criança foi encontrada morta com sinais de abuso, e mais tarde descobririam que foi um familiar ou alguém próximo à família.

Preferia ter morrido.

Ele me travou, me possuiu. A outra mão segurava o membro dele, que teimava em rasgar minha garganta. Minutos depois eu vomitei ao sentir um algo escorregar pela garganta.

Inesperadamente eu fui solta e minhas costelas foram surpreendidas por pontapés, o ar faltou nos pulmões. Mas, o que eu havia feito de errado? Na época eu apenas mutilei-me, achando que, desde o princípio, eu era a culpada de tudo... é o que sempre achamos, pessoas que passam por isso.

Naquela altura ele já tinha me dominado, a única coisa que consegui sentir foram as lágrimas: elas borraram meu rosto. Eu chorava copiosamente, enquanto sentia a pureza ser manchada pela agir doentio do ser humano.

Eu fiquei extasiada no chão, jogada, sem movimentos. Ele limpou minha boca, eu apenas o deixei fazer. Eu era uma boneca de pano, sem vida. Ouvi ele dizer "não posso deixar com que você me incrimine. Você ficará quieta, e concordará com tudo o que eu disser, senão eu mato todos que você ama", assenti, afinal não queria morrer ali, ainda tinha vagas esperanças.

Ele não fez mais nada, apesar de eu ter achado que ele fez tudo, mas o que fez foi o suficiente para me deixar traumatizada. Algumas vezes chegou a deslizar a mão dentro da minha calcinha, me agredindo mesmo sem ir afundo, o que foi o fim do poço para mim. Eu era jovem, jovem demais, jamais tive maldade alguma, antes daquilo eu acreditava que a cegonha era quem trazia os bebês para os pais, esse era o meu nível de ingenuidade.

Ele me arrastou pela rua. Chegou derrubando a porta da minha casa. Ele disse "essa garota é completamente maluca, é pervertida! Eu estava dormindo no sofá, cansado do trabalho. Senti algo me tocar, quando acordei ela segurando o meu... e o introduzia dentro da boca. Achei que fosse minha mulher, mas ao ficar lúcido vi que era ela. Mas dei um chega pra lá nela. Jurei que contaria a vocês, ela é uma doente, uma ninfomaníaca! Imaginem o que ela faria com o irmão, ou o pai!". Mamãe me olhou com um profundo desgosto e nojo, tão fria, como se eu não valesse nada para ela, papai não estava em casa quando isso aconteceu, ele chegaria de viagem ao anoitecer, mamãe tomou todas as providências.

Ele mentiu, tão cinicamente que eu não juntei forças para retrucar, nem se eu quisesse. O mais inimaginável aconteceu. "Saia da minha casa, você é um péssimo exemplo para o seu irmão! É igualzinha à minha irmã, que Deus a amaldiçoe!", gritara mamãe, eu a desconheci, tão cega e convencida. Eles acreditaram. Eu tentei explicar, mas já era tarde. Preferiram acreditar nas palavras de um estranho. Fui arremessada ao abismo.

Dos doze aos quinze anos eu dormia em caixotes e comia comida estragada do lixo. As vezes passava dias sem me alimentar. A única coisa que encontrava para comer era sobras nas lixeiras espalhadas pela cidade. Emagreci, e não sei como não adoeci para ver a morte. Durante esse período, achando que poderia sobreviver àquela vida de cão, procurei emprego, claro, mas ninguém me aceitava, não pagariam a uma criança. Porem comecei a recolher o lixo para ganhar em troca um prato de comida e vender produtos reciclados que juntava para ganhar um trocado para ter um copo com água.

Com dezesseis anos, já com a alma machucada, eu não tive outra escolha. Por onde eu passava via mulheres se exibindo para carros que passavam a toda velocidade, e eu não entendia muito bem, mas ai vi algumas entrando, bem vestidas, quase nuas. Horas depois elas voltavam a pé, sorridentes, umas nem tanto. Perguntei a uma mulher loira o que estava acontecendo ali, e ela me disse "Fedelha, aqui não é o seu lugar. Mas aqui ganhamos dinheiro, quer entrar para o ramo?", eu, confusa, disse que sim, ela falou "Na rua você não pode ficar, os tiras podem implicar, mas se esperar algumas horas posso trazer alguém que fará de seu corpo uma mina de ouro". Saiu e andou rebolando exageradamente. "Quantos anos tem, pirralha?" respirei e disse "16". Sobre um par de sapatos de salto agulha encostou em mais um carro, começou a conversar, logo estava entrando, e, antes de fechar a porta, ela olhou para mim e piscou mascando chiclete, os lábios vermelhos.

Mas eu sabia que um dia o sol brilharia mais forte para mim, que minha vida mudaria de algum jeito, e eu me agarraria fortemente a isso.

okie.K^


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