3° Capítulo - Duas Vezes é Coincidência?

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Depois de ter apanhado aquelas notas de cem reais, sai do quarto sentindo-me perturbada pelo passado que insistia em voltar e atrapalhar a minha vida. A certeza que tinha era que não havia acontecido algo muito importante no meu mundo, apenas a condenação de algo que não fiz.

Fiquei na calçada aguardando algum táxi passar e levar-me para casa. Acho que chegou o momento de falar como tia Gertrudes era importante para mim.

Ela trabalhou em algo semelhante ao que faço. Os homens a chamavam de "Garganta de Ouro", cortejada por homens ricos que iam aos cabarés da época para degusta-la. A prostituição não era hereditária na família, mas foi o único caminho encontrado por mim, eu achava que era o único, poderia estar errada, ora. Esse apelido dela era um tanto curioso pelo sentido que ele esboçava quando mencionado.

Ao contrário do que se passava nas mentes dos outros, o apelido foi dado por um dos frequentadores do cabaré, Estevão, e o significado provinha de sua bela voz que contribuía para chamar a atenção de muitos, e ela vivia somente do conto, porém auxiliava as garotas. O surgimento de uma gravidez a deixou perdida, havia se apaixonado por um estrangeiro, e ela teve que arcar com as consequências. No começo, o pequeno Augusto ficava lá em casa, mas ai veio os problemas, e titia teve que busca-lo.

Desde nova ouvia falar a respeito de tia Gertrudes, mas nunca soube de toda sua fama e sucesso com os rapazes virgens.

Tia Gê costumava ir visitar-nos, porém não era bem recebida pelos meus pais, mamãe nunca aceitou o fato de ter uma irmã que fazia esse tipo de trabalho, e isso não intimidou-a a não saber notícias de sua família, considerando isso foi assim que ela ficou sabendo o que aconteceu comigo, certamente repreendeu os meus pais e eles não deram atenção. A Garota do Cebolão, nome dado às integrantes do Cabaré do Cebolão, foi a única capaz de me entender, cuidar e ouvir.

Até hoje me lembrava do nosso encontro. Foi logo quando comecei a fazer programas, acho que cinco meses depois. Ela surgiu como uma espécie de fada madrinha, eu a amava desde os tempos das visitas, ela era espontânea, engraçada, e me dava dicas para se sair bem com os garotos – minha mãe a restringiu por conta das coisas que ela dizia, todavia eu não compreendia direito. Foi uma feliz coincidência.

Ela vestia uma espécie de capa indiana, colares abusivos, e brincos gigantes e espalhafatosos. O batom roxo cobria seus lábios, a famosa sombra de céu em dias chuvosos enfeitava seus olhos. Longos cílios postiços se agarravam nos naturais, e um pesado blush enfeitava suas maçãs. Eu jurava que era uma Drag Queen.

- Vic, meu favo de mel, o que faz por essas bandas, vestida nesses trajes absurdos – ela disse surpresa. A julgar pelo figurino que eu vestia; um top e uma meia-calça preta, calçando salto alto, não passava de uma roupa de freira perto dela.

Naquele momento, eu saltei os olhos, não achei que iria encontrar alguém próximo do escalão familiar.

- Ah, tia, vai dizer que a senhora não sabe o que houve comigo? – perguntei enraivecida. – Aquele filho da puta, além de tirar minha inocência, foi sujo o bastante para jogar tudo na minha aba! A senhora não entende, meus pais acreditaram nele, não acreditaram em mim?! – disse incapaz de conter as lágrimas no momento.

Ela estendeu uma das mãos. As unhas gigantescas, pintadas de preto, ela era um verdadeiro carnaval, mas com um coração maior que o mundo. Enxugou lágrimas que desceram pelo meu rosto. Eu abaixei a cabeça e fiquei totalmente sem reação.

- Venha comigo, você não pode perder sua vida, viver desta maneira! – ela soou solidária. – Lá em casa tem uma cama, roupa limpa. É simples, mas será o suficiente para te manter segura, não pode viver do corpo. Olha meu exemplo: era a mais cobiçada, os homens caiam aos meus pés, hoje em dia se um velho tarado olhar pra mim é lucro, não mantive meu corpo após ter outro filho, que infelizmente caiu no mundo das drogas, minha vida não é perfeita, mas lá em casa sempre cabe mais um. – ela me enrolou com seu braço, me apertou carinhosamente, fiquei satisfeita. – O que quero dizer, é que seu corpo não será o mesmo, e para sobreviver neste mundo é preciso muito estudo, conhecimento, só assim crescerá.

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