Capítulo 3.

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Três semanas foi tudo que precisou para se esquecer que algum dia fora um príncipe, para deixar seus bons modos de lado.
Caçar para comer, tomar banhos gelados, enfrentar bandidos, matar predadores que tentavam os devorar... Aquelas semanas na floresta o transformaram de um monarca metido e egocêntrico para um sobrevivente frio.
Sentado na pedra enquanto esfolava um coelho para usar a pele e a carne, Hayden se viu encarando o horizonte, na direção onde vira aquela linda e esquentadinha princesa. Jamais vira olhos como os dela, tanto as cores quanto a firmeza e a audácia,  quanto a gentileza escondida por trás.
Ela havia atiçado sua curiosidade, seu interesse, e ele não estava gostando daquilo.
— Procurando por fantasmas?
Nox se sentou ao seu lado e encarou o coelho mal esfolado e então, olhou na direção que Hayden olhava antes de encontrar os olhos cor de safira do rapaz.
— Não, apenas relembrando momentos.
Disse ele, secamente, e voltou a arrancar a pele do coelho. O sangue que cobria suas mãos já estava ficando seco graças ao frio.
Ele poderia sentir pena do animal, queria sentir, mas não conseguia. Aquilo era sobrevivência. Era inverno. E no inverno ou você mata, ou morre.
— Ela o intrigou tanto assim? Nem mesmo chegaram a duelar.
Hayden sorriu maliciosamente.
— Ela consegue me acompanhar.— Nox lançou a ele um olhar questionador, mostrando ao príncipe herdeiro que não havia entendido bem o que ele queria dizer.— Correndo, ela consegue me acompanhar correndo.
Nox apenas o encarou, provavelmente processando a ideia de que uma garota conseguia acompanhar Hayden em uma corrida.
— Certa vez, me disse que eu era especial, mas que não sabia o por que, já que não há magia em minha linhagem há milênios. Não sei de onde vem essa velocidade sobre-humana, nem a força ou a resistência. Mas ela parecia ser igual a mim nesse quesito.
— Então acha que ela pode ser o caminho para descobrir por que você tem essas habilidades... sobre-humanas?
Um leve aceno com a cabeça.
— Como pretende fazer isso? Ela é uma princesa, não será fácil entrar em Camelot. Camelot é a capital da Grã-Bretanha, é suicídio invadir o castelo, Hayden!
Um sorriso travesso dançou nos lábios do príncipe. E quando ele sorria daquele jeito... que os deuses os ajudassem.
— Lembra de quando me mandou secretamente para os Assassinos de Tintagel?
Nox acenou em positivo com a cabeça.
— Bem... digamos que aprendi o necessário com eles.
Perdido, ele estava tão perdido no luto e na raiva... Tão
Em três semanas, Nox não reconhecia mais o príncipe sentado ao seu lado, e temia que jamais voltasse a reconhecer.
A personalidade de Hayden ainda permanecia ali, mas havia mudado muito em si mesmo, afundando o suficiente na dor e no ódio para que se perdesse, que se tornasse tão frio quanto o gelo que corria em suas veias. Gelo que ele só liberara uma vez, inconscientemente quando era criança.
Temor. Foi isso que tomou conta do peito de Nox ao ver as Iris dos olhos do rapaz se tingirem de vermelho.
Dentre todas as lendas que Nox já lera e ouvira, só havia uma com um homem de olhos vermelhos.
E foi exatamente por esse motivo, graças a sua crença que lendas são histórias reais a muito esquecidas, que Nox, o antigo capitão da guarda de Oryoth, temeu, e temeu não apenas por ele, mas pela garota que despertara o interesse do descendente de Gilgamesh.

***

— Sério?
— Sim. Sinto muito, Faith, mas não poderei ir caçar hoje. Graças a queda de Oryoth, todos os reinos estão em alerta. Conosco não será diferente.
— Você nunca conheceu a realeza de Oryoth?
Um aceno negativo com a cabeça.
— Não tínhamos vínculo algum. Oryoth surgiu há cinco séculos atrás, era um reino novo e de certa forma frágil. Os exércitos, mesmo com alguns possuidores de magia entre eles, não deram conta da ameaça e, bem, foram saqueados.— Joseph suspirou enquanto olhava pela janela, para o reino além dela.— Não sou um rei de verdade, sobrinha, não nasci para governar embora esteja fazendo um bom trabalho. E é por isso que estou a preparando. Não apenas por que é a herdeira legítima, mas por que é mais capaz que eu. É tanto uma diplomata quanto uma guerreira.
— Sabe que não gosto da ideia de ser rainha.
Embora, de certa forma, se aquilo algum dia significasse manter seu povo em segurança, ela seria rainha com o maior prazer, sendo ou não a princesa.
O tio apenas sorriu gentilmente para ela.
— Vá descansar um pouco, seu treino hoje foi cansativo e já se passa das três da tarde.
— E à noite ainda tenho montaria.
— Exatamente.
— E quanto a você?
O tio tirou as mãos que estavam atrás das costas e cruzou os braços, suspirando longamente.
— Lerei cartas dos outros reinos, nenhum deles tem notícias do príncipe de Oryoth.
Ela jamais chegou a conhecer a realeza daquele reino distante. Camelot e Oryoth não tinham vínculos de qualquer tipo. O por que ela não sabia, porém era um dos reinos que ela pretendia construir alianças quando se tornasse rainha. Mas agora...
Ela desejou aos deuses que o herdeiro do trono estivesse vivo em algum lugar e a salvo.
E também desejou jamais saber o que era perder tudo aquilo que ama. O povo, a família, os amigos...
— Tio... por que Oryoth caiu?
O rosto do tio ficou tenso, com aquela típica expressão de quando estava preocupado.
— Na carta disse que foi uma mulher. Uma mulher poderosa, junto com legiões do inferno.
O sangue de Faith congelou tanto que se tornou impossível se mover.
Se aquilo se espalhasse e chegasse a Camelot... Pelos deuses.
O Rei tentou suavizar a própria expressão, embora tenha falhado.
— Vá descansar, o reino está seguro.
Ela queria discordar, queria debater e dizer que não estavam. Que ela sentia, que tivera um sonho com aquilo antes mesmo de acontecer.
Mas ao invés disso, apenas assentiu para o tio e foi para o quarto.
Precisava acalmar os próprios pensamentos, as próprias paranóias e calar o medo crescente em seu peito.
A maioria do povo de Oryoth eram curandeiros, alguns eram possuidores de magia. Se nem eles haviam dado conta...
Mas Camelot daria. Tinha que dar.
Aproveitando o fato de que o tio estaria trancado no escritório lendo e relendo as cartas dos reinos aliados, Faith vestiu a roupa de caça, mas dessa vez colocou uma capa vermelha como sangue.
Ela não sairia para caçar animais, ela iria até a árvore sagrada, que há séculos havia se calado.
Muitos não mais acreditavam que a árvore falaria, ou que o pequeno reino dentro dela se mostraria novamente . Mas aquele mundo era cheio de magia e talvez, talvez as fadas da Floresta Encantada teriam alguma compaixão.
Enquanto passava pelos corredores com a espada presa na cintura e o arco e aljava nas costas, os criados não fizeram perguntas. Provavelmente estariam pensando exatamente o que ela queria que pensassem. Que era somente mais uma das caças da princesa.
Quando chegou ao salão do trono, agradeceu aos deuses por seu tio não estar lá. Por também não encontrar nem Maya, nem Jason.
Eles fariam perguntas que no momento ela não queria responder.

(...)

O vento e a neve na floresta fustigavam seu rosto, protegido parcialmente apenas pelo capuz.
Não havia sons naquela Floresta, não mais.
Sempre que o inverno chegava, a Floresta Encantada perdia seu brilho, afinal, todos os seres mágicos se escondiam do frio castigaste.
Ao olhar para o lado, bem ao longe pode ver um pequeno clarão entre as árvores. Aquilo a fez acelerar o passo.
Tudo o que menos queria no momento era enfrentar bandidos ou... aquele rapaz do dia anterior.
A árvore sagrada, ao contrário do resto da floresta, continuava bela e imponente como sempre e não era afetada pela estação atual. A neve não cobria suas folhas, e o calor aconchegante que a árvore emanava era mais do que bem vindo.
— Muito bem, vejamos se terei sorte.
A princesa se aproximou e tocou a árvore com a palma da mão e rezou em silêncio, pedindo ajuda. Não somente para Camelot, capital da Bretanha, mas para todo o território.
A jovem princesa havia sonhado com um reino em chamas infestado de criaturas vindas de pesadelos, e uma mulher de longos cabelos negros, cujo rosto jamais conseguira ver.
Agora, ao perceber que Oryoth era o reino que apareceu em seus sonhos, ela passou a temer pela segurança de Camelot, pela segurança do país.
Antes que sua mão se afastasse completamente da árvore, um brilho intenso começou a emanar da árvore.
Faith deu um passo para trás, para em seguida ser engolida pelo clarão que a atingiu.

Herdeiros das Cinzas (PAUSADO e em REESCRITA)Onde histórias criam vida. Descubra agora