Capitulo 1.

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A cidade havia virado ruínas, destroçada de todas as formas.
Escombros enchiam as ruas, pessoas corriam e gritavam em desespero e agonia. Mas ela se deliciava com aquilo, ele tinha certeza que sim.
— Hayden!— Nox o chamou, e já aguardava com dois cavalos selados estavam prontos para adentrarem na floresta a galope.
Estavam longe do centro da confusão, mas ainda era possível escutar os gritos de terror dos cidadãos e as risadas e grunhidos de prazer das criaturas.
Aqueles seres haviam saído das profundezas do inferno, eram humanos e não eram ao mesmo tempo. A morte reinava ali, e infelizmente, não eram páreos para ela.
Hayden olhou para trás, na direção dos gritos e, mesmo sem poder os ver, pediu perdão silenciosamente.
Subiu na sela de seu cavalo e junto com Nox adentraram a floresta, sua égua palomino correndo como o vento.
Naquele dia, ele deixara de acreditar nos deuses ou em entidades. Eles existiam, isso era fato, mas não havia bondade naqueles imortais.
E provavelmente, parte de sua bondade havia sido perdida também enquanto deixava o reino e o povo para trás. Sua família...
— Sinto muito.
O jovem ergueu o olhar para Nox, o comentário sincero o atingindo em um ponto sensível do coração.
— Não pude salvá-los. Em breve a notícia irá se espalhar pela Bretanha.
Apesar da tristeza, havia ódio explícito na voz do rapaz. Ódio não apenas de quem causou aquela desgraça no reino, mas ódio de si por estar tão impotente.
E aquele olhar gélido e enfurecido fizeram com que Nox encolhesse os ombros.
— Fez o que pode, ela é forte demais e não estávamos preparados para algo como... aquilo.
— Ninguém nunca estará.
O caminho que seguiram foi silencioso e quieto durante os dias seguintes, e graças a magia de vento de Nox, seus cheiros ficaram afastados dos Cães do Inferno, era como o jovem havia começado a chamá-los.
Quanto mais o tempo passava, quanto mais tinham que caçar o próprio alimento e mais tinham que enfrentar ladrões, mais raiva o jovem sentia, mais aquele gelo em suas veias se acumulava.
Gelo que não foi suficiente contra ela. Contra aquela desgraçada destruidora de reinos e vidas.
— Hayden, acho melhor pararmos e acamparmos por aqui hoje, em breve irá anoitecer.
— Tudo bem.— Disse ele fazendo com que a égua parasse e desceu da sela, já retirando da mesma as coisas necessárias para o acampamento.
Coisas que tiveram que roubar de pessoas inocentes, tão necessitadas quanto eles.
Hayden não conhecia os caminhos, não sabiam para onde estavam indo e para onde sequer aquela estrada os levaria. Mas qualquer que fosse o lugar, aqueles sons o perseguiriam para sempre e o atormentariam nos sonhos até que a morte lhe reivindicasse.

***

Era uma manhã calma no reino dos cavaleiros, o alvorecer começara a aparecer e manchar o céu com tons alaranjados e amarelos.
Ela adorava se sentar à janela naquela hora e olhar o sol nascer, renascer todos os dias.
O único ruído da manhã eram o tintilar de aço sendo chocado contra aço, vindos do pátio de treino e as vezes era possível ouvir a risada dos cavaleiros.
Os pássaros também deixavam seus suaves cantos ecoarem e serem carregados pelos ventos, trazendo para ela um tipo de tranquilidade.
— Princesa!— Exclamou a aia, Edda era seu nome. A jovem gostava dela, sempre foi gentil e simpática, e sempre ajudou seu tio com o que podia.
— Edda, bom dia.— ela desgrudou da janela, deixando se olhar para o céu que agora era de um belo azul claro, banhado por luz e poucas nuvens.— Veio mais cedo hoje.
— Sim, seu tio está se aprontando para uma caçada e me pediu para ver se quer acompanhá-lo.
Um sorriso travesso surgiu nos lábios da jovem princesa, e com disciplina treinada o sorriso se alargou até fosse refletido nos olhos.
— Eu irei, vou me aprontar agora. Diga que se ele for sem mim, vou passar cola no trono.
A aia gargalhou e assentiu para a princesa, depois se retirou do quarto e foi entregar a mensagem ao destinatário.
Era costume que ela e o tio saíssem para caçar ao menos uma vez no mês.
A jovem sempre contava os dias para que a caçada chegasse. Ela não gostava de matar os animais, na verdade, não gostava de ferir qualquer ser inocente. Mas estavam no inverno e o estoque de comida em breve começaria a chegar ao fim. Então, caçar era a melhor maneira de evitar que todos morressem de fome no inverno impiedoso diante deles.
Ao abrir o guarda-roupa ela rapidamente encontrou as roupas de couro justa e as botas pretas, assim como a roupa de caça.
Era feito do melhor couro da região, flexível e firme, perfeito tanto para caça, quanto para luta.
O tecido deslizou por sua pele como uma segunda camada, ajustando-se perfeitamente e acentuando as curvas e os seios generosos, assim como a bunda.
A maioria das garotas de sua idade eram magras e ossudas. Ela também teve uma fase assim em sua vida, quando era criança. Mas o Rei regente a obrigara a começar a fazer exercícios diários, a treinar e correr com ele. Isso lhe garantiu um corpo de guerreira, apesar de delicado.
Ao calçar as botas, encontrou sua capa azul acinzentado e a colocou, então seguiu para o outro armário do outro lado do quarto.
Aquele era seu nível favorito na casa, não pelos ornamentos entalhados na Madeira com desenhos em espirais e redemoinhos de fogo. Mas sim pelo que o móvel guardava.
Uma variedade de facas de caça, adagas e um arco perfeito para caça e para luta. Três aljavas cheias estavam penduradas ao lado do arco prateado, também com detalhes em redemoinhos de fogo.
Certa vez ela testara aquele arco e se surpreendeu com a distância que uma flecha disparada por ele poderia alcançar.
Quinhentos metros. Poucos os arcos que tinham essa força para lançar a flecha, sem tremer ou hesitar. Era uma arma e tanto, e Faith jamais se livraria dela.
Aquele arco só não conseguia competir com a espada de cabo dourado, punho de couro e a ponta do punho que carregava uma safira azul.
A espada era perfeitamente equilibrada e leve, afiada ao máximo. Mas ela jamais teve a chance de usá-la.
Uma vozinha interior lhe cutucava o temperamento imprudente que ela se obrigava a trancar em uma jaula, bem no fundo do peito.
Mas dessa vez, ela deixou a jaula aberta e amarrou a bainha da espada no cinto do traje e finalmente foi de encontro ao seu tio.
Os corredores do castelo estavam agitados como sempre, embora ela nunca soube exatamente o por que de estar sempre tão agitado.
Empregados corriam de um lado para o outro, alguns com roupas nas mãos, outros ela simplesmente não sabia o motivo de estarem correndo.
Ao olhar pela janela, pôde ver os soldados caminhando pelo corredor externo e sorrindo, provavelmente conversando sobre mulheres, como sempre faziam e se gabavam.
Havia um jovem cavaleiro, extremamente talentoso que tinha tentado roubar-lhe um beijo. Como resposta, aproveitando a adaga na mão, Faith deixou seu temperamento impulsivo assumir o controle e deu a ele uma bela cicatriz na coxa esquerda.
Mas isso fora há dois anos, hoje ela se xingava por ter sido tão idiota e imatura.
Ele sempre fora bonito, isso era fato. Mas era mais mulherengo que todos os guardas do castelo juntos. No fim das contas, ele acabou se tornando um de seus amigos mais próximos, e apesar das cantadas e elogios disfarçados, ele nunca mais tentou toca-lá novamente.
Ao chegar no pátio principal, seu tio já esperava enquanto segurava as rédeas de dois cavalos e olhava para a sobrinha, o cenho franzido de uma forma que ela conhecia bem.
— Está atrasada.
— Eu sei... estava me decidindo se levaria Saffir ou não.
— Você nunca usou está espada, não acho que conseguirá usar na floresta. A menos que compre briga com um urso.
Ela deixou que uma risada escapasse de seus lábios e segurou a rédea do corcel baio.
— Quando um urso te atacar, também vou debochar de seu temperamento, que aliás não é muito diferente do meu.
Uma gargalhada veio como resposta a ela, que sorriu de orelha a orelha e subiu no cavalo logo depois de seu tio.
Ele estava na casa dos 30 anos, ainda era forte tanto quanto os homens mais jovens que ele.
Quando assumiu a coroa, tinha apenas 23 anos e se responsabilizou de cuidar da herdeira do reino. Jamais cobiçou o trono para si, sempre disse que não nascera para ser rei.
Faith discordava. Joseph era um otimo Rei, o melhor que tiveram depois de seu irmão e seu pai.
Depois do assassinato, o reino ficara em puro terror e jamais souberam quem havia matado o rei e a rainha.
Não foi por falta de procura, não, de fato não fora. Passaram anos procurando rastros do assassino, mas tudo que encontraram foi uma enorme pilha de nada.
Quando os cavalos pararam lado a lado de frente aos portões do Castelo, os guardas no chão começaram a empurrar o enorme portão para que eles passassem.
Os guardas que estavam nos corredores do muro e nas torres se viraram e fizeram uma leve e respeitosa reverência.
Faith sorriu para eles e seguiu caminho, passando pela rua principal do reino, onde varias lojas e barracas de comerciantes estavam a todo vapor.
Muitos cumprimentaram o Rei e a princesa, cujo rosto aparentava ser mais velho que seus 18 anos.
Apesar da alegria de sempre, havia tristeza em seus olhos, mesmo anos depois da tragédia.
Depois de alguns minutos de cavalgada, a Floresta dos Cervos entrou em seu campo visual.
Ela já conseguia sentir o cheiro de Pinho e neve desde que saiu do castelo. Mas agora, com a floresta há poucos metros de si, o cheiro havia se intensificado e acariciado sua memória.
— Vamos nos separar e nos encontramos aqui ao entardecer. — Disse Joseph enquanto amarrava os dois cavalos em uma árvore na entrada da floresta.
Ela assentiu para o tio e tirou o arco das costas e preparou uma flecha, mantendo o arco abaixado enquanto adentrava na floresta pisando devagar e suavemente na neve, tentando não pisar em nenhum galho para que o barulho não ecoasse na imensidão silenciosa da floresta.
Seu tio já não estava mais à vista, havia sumido no emaranhado de árvores altas e pinheiros.
A neve caia fluida e em pouca quantidade, como se fosse apenas garoa. Aquilo tornava o cenário algo vindo de sonhos.
Os minutos se passaram, e nenhum sinal de qualquer ser vivo podia ser detectado até o momento.
Ao suspirar, o ar se condensou à frente de seu rosto. Por sorte o couro e a capa a esquentavam o suficiente, e as botas revestidas não permitiam que a neve entrasse e encharcasse seus pés.
Mas como se os deuses ouvissem suas preces silenciosas, depois de horas e de duas maçãs que não lhe caíram bem no estômago, a princesa encontrou um cervo raspando as cascas de uma árvore com os chifres.
Ela se escondeu atrás de uma árvore e preparou a mira.
E se abaixou, passos silenciosos como os de um felino, o arco sequer reclamou quando a corda foi puxada, mantendo a flecha parada e apontada para o animal.
A mão da princesa encostou na própria bochecha, os olhos concentrados no alvo que estava ocupado demais se alimentando para prestar atenção ao redor.
Para prestar atenção na caçadora que apontava uma flecha de freixos para seu pescoço.
Ela prendeu a respiração e soltou a flecha, que saiu em alta velocidade.
Mas não atingiu o cervo.
Atingiu uma pessoa que havia saltado na lateral do cervo, com uma faca de caça na mão. Uma capa preta como a noite pendia de suas costas, o capuz tapava suas feições.
E ela não soube se o grunhido masculino vindo da figura era de dor, pela flecha fincada no ombro, ou se era de raiva, pois agora o cervo corria desesperadamente e desaparecia entre as árvores.
O sujeito retirou a flecha do ombro e grunhiu alto enquanto a jogava no chão coberto de neve, que agora estava começando a se manchar de sangue.
Ele se virou o suficiente para que ela visse metade de seu rosto.
Apenas o suficiente para que visse o olho azul-safira se tingir de vermelho.

Herdeiros das Cinzas (PAUSADO e em REESCRITA)Onde histórias criam vida. Descubra agora