A Duquesa de cabelos castanhos não achou nada comum o recebimento daquela carta.
Ela jamais recebeu qualquer coisa daquela pessoa. No entanto, seu pai o conhecia fazia muito, muito tempo.
A jovem deixou que seus olhos percorressem os detalhes no papel, a letra cursiva e caprichada, quase tão bonita do que das mulheres da alta nobreza.
A maioria dos homens nobres também tinham as letras bonitas, como se para dizer exatamente em que posição social estão.
Mas a caligrafia naquela carta era uma mistura de pressa, sofisticação e cuidado.
No envelope o nome que se encontrava no destinatário era o da princesa, e o nome do remetente era de um homem.
Não, não qualquer homem.
Mas o homem que feiticeiros e bruxas e magos procuram na incessante tentativa de obter conhecimento, de obter um poder ainda maior.
Pobres tolos e teimosos, nunca aprenderam que não se encontra o Mago Supremo, mas ele que te encontra.
Os dedos levemente longos com as unhas pintadas em vermelho puxou o papel dobrado de dentro do envelope e leu as informações ali contidas.
Conforme seus olhos corriam pelas letras, seu coração se apertava e aquela sensação incômoda, nomeada de medo, começou a lhe trazer um frio desagradável na altura de seu ventre.
Merlin informou naquela carta, com poucas palavras, que a Bretanha está correndo perigo, e que toda ajuda seria necessária.
A princesa de Camelot, uma antiga amiga da duquesa estava na linha de frente da organização de defesa e ataque, fora a única que recebeu a notícia e se moveu para tomar medidas contra a ameaça iminente.
— Senhorita Eloah?
A voz de Jessie, uma das aias do castelo de Edimburgo, soou atrás da porta.
— Pode entrar, Jess. — disse a duquesa, dobrando a carta novamente.
Os cabelos ruivo encaracolados apareceram na porta, e o sorriso doce da aia tirou um pouco do peso no peito de Eloah.
— Seu pai pediu para lhe chamar, senhorita.
— Diga a ele que já estou descendo, tenho uma coisa importante a dizer.
— Claro. Deseja algo para comer?
A duquesa negou com a cabeça.
— Estou sem fome. Mas obrigada. Irei tomar um banho agora e já irei falar com meu pai.
A aia apenas fez um sinal positivo com a cabeça e se retirou do quarto.
Aquela carta tiraria o sono da jovem duquesa por dias, talvez meses. Se é que esse tempo lhe seria concedido.
O pai provavelmente já estava ciente de toda a notícia, mas provavelmente não falara nada para a filha pois o duque Alexius sempre a enxergou como uma flor frágil no meio de um campo de batalha. O que o homem não sabia era que sua herdeira era um lobo em pele de cordeiro.
A garota treinou a vida toda, com a consciência do pai, porém, manteve a parte doce e frágil de personalidade se sobressair sempre que o pai estava presente.
Ele sequer desconfiava que a duquesa se encontrava com o cavalariço nos estábulos quase todos os dias, e muito menos do que eles faziam em uma das baias vazias.
No entanto, ela preferia que o pai a visse daquela maneira, apesar de o mesmo agir de forma irritantemente protetora.
Bancar a garotinha doce e ingênua era tão fácil, que acabou se tornando um vício. Uma arma nas mãos da jovem.
E sempre que ela acordava de manhã e penteava os cabelos castanhos, sonhava acordada com o dia em que o pai teria a surpresa de ver que ela não era nada daquilo que ele pensava. Que Eloah Daybreak, duquesa de Carvalhall, era a melhor esgrimista da região, senão do continente.
O sol já lhe mandava um aviso, dizendo-lhe que em breve chegaria o meio-dia e que a caça habitual do pai começaria.
Ela não entendia por que os homens gostavam tanto assim de caçar.
Sem mais se perder nos próprios pensamentos, Eloah vestiu seu traje; calça de couro, uma blusa carmim, jaqueta de couro marrom e botas também de couro que quase lhe alcançaram os joelhos.
As mechas castanhas estavam agora presas em uma trança.
Ao sair de seus aposentos e caminhar até a sala do Trono, ela pôde sentir um frio na barriga. Seria ansiedade? Hesitação? Ou Talvez seria medo? Ela não sabia. Mas sabia que mantinha a pose de menina inocente por que tinha consciência de que o pai jamais permitiria que ela se arriscasse. Que a vida dela entrasse em jogo.
Mas, nesse caso, ele não teria opções. E mesmo que o pedido da filha fosse negado, a jovem atenderia ao pedido. Sua magia cantava, pedia adrenalina.
E por mais que a possibilidade de morrer não lhe agradasse, ela sabia que era seu dever ir até Merlin.
Seus passos estavam pesados e ecoaram por todo o salão do trono, aquele espaço tão vazio e sem emoções.
Aquela parte do castelo sempre fora grande, se não a maior do interior da construção. O chão de mármore de cor marfin com o tapete azul se estendendo desde a porta até o trono eram as únicas decorações no amplo espaço. Sem contar, é claro, as cortinas também em tom azul. Um azul tão escuro quanto a água no mar aberto.
— Pai?
O homem a olhou durante todo o trajeto até que ela chegasse ao trono. Os olhos negros davam ao homem de meia idade uma aparência tanto bonita, quanto amedrontadora, justamente pelas ires negras entrarem em contraste com os cabelos tão loiros que quase chegavam a ser brancos. As mechas claras e levemente onduladas nas pontas se estendiam até tocar o ombro do duque.
Mesmo sentado no trono, a postura do pai era rígida como uma rocha.
— O que quer, menina?
A falta de afeto e suavidade na voz do homem não incomodava-a mais. A vida toda ele fora um homem frio.
— Merlin enviou uma carta.
Eloah teve o cuidado de memorizar a carta, as palavras ali contidas, pois suspeitava que assim que o pai lesse-as e as absorvesse, transformaria aquele pedaço de papel em cinzas.
Ela se aproximou, sem qualquer formalidade, arrancando do pai um olhar de advertência. Sua mão direita se estendeu para frente, entregando o objeto para o duque.
As órbitas escuras correram pela caligrafia do mago, atentos e frios. O único sinal de surpresa foi uma suave franzir de cenho.
— O mago está louco. Conheço essa lenda ridícula.
— Por que ele mentiria? O que está escrito faz todo sentido, dado os boatos que escutamos.
Ele a olhou com desdém.
— Acredita mesmo nessas bobagens? Tais reinos só cairam por serem fracos. Provavelmente os saxões estão de volta depois de séculos, e, para esconder a vergonha da derrota em suas próprias terras, inventaram que seres malignos os levaram a perdição. Patético, criança.
Eloah não desviou o olhar como sempre fazia.
— Acredito. Eu sou a prova viva de que magia existe, e ainda sim você se recusa a acreditar que criaturas malignas existam?
O tom questionador, tanto quanto o simples ato de questionar, fez com que aquele olhar gélido se tornasse severo.
— Você é uma aberração. Assim como a princesa, e todos que carregam essa maldição em seus corpos.
Por mais que não quisesse, as palavras pesaram como chumbo em seu coração. Desde a primeira vez que seu poder irradiara, ele passara a chamá-la daquela maneira.
Aberração. Aquela era uma palavra capaz de roubar uma vida e entregá-la de presente para a Morte.
— Você é um ignorante. Fala e age como se fosse rei, mas o senhor não é.
Um sorriso se formou nos lábios do duque, mas o mesmo não refletiu nos olhos.
— Saia daqui. Faça algo útil. Borde seu enxoval.
— Já estou sendo útil, lhe mostrando a carta. E serei ainda mais útil quando ir até Merlin.
— E quem lhe deu permissão de sair deste lugar e colocar sua vida em risco? Sua tarefa aqui é gerar herdeiros nobres.
Nojo. Aquela era a palavra que definia o que ela sentia pelo pai.
— Pediu para me chamar, qual era o assunto?
O tom de voz da garota assumiu uma forma gélida e desdenhosa.
Sua expressão também mostrava claramente esses sentimentos.
— Falar sobre seu casamento com seu primo terceiro, oras, por que mais?
Seu estômago revirou.
— Não vou me casar com aquele porco. — disparou ela.
— Se eu disser que sim, você irá. É bem simples, filha.
Eloah fez questão de não conter a careta de nojo que se formou em seu rosto.
Rixol Asmont, primo terceiro por parte de pai. Um jovem bonito, até, de expressões marcantes, lábios carnudos e olhos castanho-mel. Seria alguém com quem Eloah facilmente se divertiria a noite. Porém, era cheio de preconceitos e ideais primitivos. Via as mulheres como posse, e não como prováveis e amáveis esposas, jamais como companheiras.
O duque apenas a encarou conforme ela disse:
— Não irei me casar. Só espero que seu arsenal e seus soldados sejam o suficiente para combater demônios.
Sem mais uma palavra ou abertura para que seu pai respondesse, a duquesa saiu do cômodo a passos largos e pesados.
Apesar da raiva, sua mente já estava concentrada no que ela precisaria fazer, e, assim que entrou em seu quarto, teve de tapar a boca para conter o grito.
Havia um homem, com uma capa vermelha, encostado perto da janela e olhando o horizonte através dela.
Ele emanava poder. Tão grande e antigo que imediatamente a jovem o reconheceu.
— Merlin. — sua voz saiu baixa e incrédula.
— Sinto muito por seu pai, menina.
Ele se virou para ela e seu coração pulou.
Merlin era lindo de muitas formas, mesmo que aparente ter cerca de 40 anos. Ela sempre o imaginou como um velho barbudo e corcunda. Mas, um homem de meia idade, bonito e aparentemente com o corpo em forma... aquilo sim era uma surpresa.
O Mago Supremo soltou uma risada baixa.
— Obrigado pelo elogio, é bom saber que mesmo depois de milênios ainda continuo atraente.
As bochechas de Eloah pareciam estar em chamas neste momento.
— Eu nã...
— Não se preocupe. Foi apenas um pensamento meio alto para que eu não ouvisse. — Ele fez uma pequena pausa.— Vim lhe informar o caminho até Avalon. Eu não poderia passar essa informação de outra forma senão pessoalmente.
De imediato, inúmeras imagens apareceram em sua mente. Camelot. Árvores. Neve. Um homem solitário em um pequeno acampamento. Uma árvore intocada pela estação fria.
Ela olhou para ele, levemente zonza.
Merlin suspirou.
— A tontura já passa. Transferir tanta informação de uma mente à outra normalmente causa esse efeito colateral no receptor. Agora, beba isso.
O mago estendeu a mão e uma taça com um líquido transparente lhe surgiu na mão.
Eloah desconfiou por um momento, mas sabia que seria necessário.
Então, suas mãos envolveram a taça e seus lábios encontraram o líquido. Não havia sabor, era como se estivesse bebendo água.
Até sentir uma pontada na cabeça se esvair, tão rápida quanto veio.
— Ótimo. Sua mente está protegida de invasões agora. Nos vemos em 3 dias.
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Herdeiros das Cinzas (PAUSADO e em REESCRITA)
FantasyEm terras longínquas, à oeste de Camelot, um jovem príncipe vê seu reino ruir e seu povo morrer das piores formas possíveis. Seu treino de uma vida toda não foi suficiente para salvar seu lar. Em Camelot, a princesa, Faith, nasceu com um dom raro...