Ele não sabia mais quanto tempo havia se passado, ou quão distante aquele mago estava.
Durante o tempo que se passou, o príncipe tentou se soltar daquelas amarras invisíveis. Mas, como era de se esperar, todas as tentativas foram em vão.
Sentado na neve — a única coisa que as amarras permitiam—, ele ficou desenhando na mesma com o pé. Hora desenhos circulares, hora desenhos um pouco mais elaborados. Como, por exemplo, um homenzinho de palito.
O estresse já havia passado, afinal depois de inúmeras e falhas tentativas de se soltar, o príncipe percebeu que não adiantaria em nada ficar nervoso. Então apenas se sentou na neve, recostado contra uma árvore e esperou, com o tédio já lhe dando sono. Mas ele não dormiria.
O sol já estava começando a se por, e normalmente, quando ele ficava tempo demais fora do acampamento improvisado, Nox vinha atrás dele.
Ficara surpreso por isso ainda não ter acontecido.
Ele ouviu um pequeno barulho seguido por uma leve dor no estômago.
— Droga.—murmurou ele para si mesmo.
Fome. Ele estava começando a ficar com fome.
Se bem se lembrava, sua última refeição havia sido pouco antes do meio dia.
Mas como não podia se mexer, também não podia sair do lugar e muito menos caçar.
Hayden xingou mentalmente o velho mago idiota e sua magia idiota. Xingou os deuses, também idiotas, por serem mesquinhos demais a ponto de sequer se importar com os mortais ou com o que aconteciam com eles.
Mas... ao parar para pensar, ele percebeu algo.
Se os próprios humanos mal tinham compaixão entre si, então por que os deuses teriam compaixão pelos humanos?
Isso foi suficiente para calar seus pensamentos furiosos e seus palavrões mentais.
Ele esperaria o mago voltar, sem adormecer e sem comer.
Mesmo que seu estômago rugisse pedindo alimento, qualquer tipo de nutriente.
Mas...
— Por que estou esperando aquele velho, ele pode sequer voltar.
Falar isso em voz alta fez parecer que se tornaria realidade. Talvez se tornasse.
Porém sua raiva e o desespero de morrer encostado naquela árvore partiram quando uma voz soou na sua mente e uma tigela de sopa apareceu em seu colo. Vapor saindo da mesma.
A boca de Hayden salivou enquanto a voz — a voz do mago, discerniu ele— ecoava em seus pensamentos:
— Sei que está pensando que o deixei para morrer. Acredite, eu jamais faria isso. Uma vida pesa demais no universo, mais do que se imagina.
— Como se me dar um prato de comida o tornasse gentil, velho.
— Se quiser, retiro o prato daí com um estalar de dedos e o deixo com fome.
Hayden pensou por longos segundos.
— Não. Ficarei com o prato.
— Ótimo.
E assim o mago sumiu de seus pensamentos.
O príncipe levou a colher de sopa até a boca. Ele conhecia aquele gosto. Ensopado de coelho.
Ciente de que ninguém estava vendo, e com as amarras dos braços e das mãos frouxas o suficiente para comer, Hayden atacou o ensopado vorazmente e fechou os olhos depois de três colheradas, apreciando o sabor.
Nunca havia comido um ensopado de coelho tão bom, nem mesmo em Oryoth.***
Avalon era exatamente como ele se lembrava. Exuberante, magnífica.
Governada por um povo poderoso e uma realeza justa.
Mas a ilha sempre fora diferente de tudo que Merlin já virá ao longo dos séculos.
A própria terra escolhia quem sentava ao trono. Sempre que um rei novo precisava ocupar o trono, um espírito vinha e decidia se o candidato era merecedor, ou não.
No resto, a ilha não intervinha.
O povo cultivava normalmente, os machos brigavam por território e, claro, por fêmeas algumas vezes.
Mas a ilha não se importava, não os expulsava de lá. Eram seu povo, e ela jamais os expulsaria sem ótimos motivos.
Ao chegar na vila, a maioria dos cidadãos o cumprimentaram com sorrisos nos rostos, outros apenas deram acenos com a cabeça.
As ruas continuavam as mesmas de séculos atrás, exceto por novas residências e pelo crescimento do reino.
Aquele lugar trazia sempre ótimas lembranças a Merlin, de uma infância e adolescência há muito esquecidas.
Avalon era sua casa, sempre seria.
Ao chegar no castelo, Lugh e Borte acenaram para ele em cumprimento. E a julgar pela expressão irritadiça do primeiro, provavelmente Asterin havia dado uma bronca nele.
— Chá? — Perguntou Merlin, se dirigindo a Lugh.— Para acalmar os nervos.
O soldado apenas fez que não com a cabeça e indicou o portão com o queixo para Borte.
Em poucos segundos, o mago adentrara no castelo de diamante.
O Caminho dos arcos —hall de entrada do castelo— estava um pouco diferente. Mais decorado, talvez.
Quando a brisa bateu suavemente em seu rosto, ele pode sentir um cheiro leve, almiscarado de pinho e rosas. E neve.
Ora, ora. Então ela já havia chegado.
As portas se abriram para o mago sem que ninguém precisasse as puxar.
Todo no castelo o cumprimentaram, mas quem se dirigiu a ele foi Rhosyn.
— Merlin! Há quanto tempo.— ela eu um grande sorriso ao vê-lo e o abraçou. Merlin passou os braços ao redor da ninfa de olhos rosados.
— 18 anos, irmã.— ele também sorriu, se lembrando do quanto já haviam se divertido juntos.
Merlin ensinou a ela quase tudo que ela sabe hoje. Bem, talvez apenas metade.
A curandeira o soltou
A real responsável pela grandeza de Rhosyn era Nesryn Ashwhite.
— Está procurando Nesryn e Ban?
— Sim. Eles estão com uma pessoa importante, suponho.
— A Herdeira.
Os olhos de Rhosyn brilharam em afirmação.
— É bom ver que ela chegou aqui sem ajuda. Onde eles estão?
— Estão no escritório. — Ela deu de ombros.— Mas... ela não parece saber de quem ela é descendente.
— De fato, ela não sabe. Mas saberá. — Merlin olhou na direção do corredor e simplesmente desapareceu.
Segundos depois, reapareceu no escritório, arrancando um leve gritinho da rainha.
A princesa apenas olhou para ele, com curiosidade estampada naqueles olhos raros.
— Merlin! Troglodita idiota!— A rainha caminhou até ele, e apesar do xingamento, ela estava sorrindo.— Séculos se passam e você continua fazendo isso!
— É sempre um prazer vê-la, Nesryn.— Ele sorriu e piscou para ela.
A rainha o abraçou forte. Os cabelos loiros cheiravam a flores do campo. Então ela encarou em seguida, os olhos não eram tão diferentes como da maioria dos Feéricos, na verdade, eram comuns. Azul-esverdeados.
O que tornava os olhos dela diferentes era a intensidade. A alegria sempre residia ali, mesmo em catástrofes.
Ban, tanto quanto os outros, sabia que a esperança e a alegria daquela mulher eram indestrutíveis. Pelo menos até hoje.
Merlin temos o dia em que aquele brilho sumiria dos olhos da rainha.
— É bom vê-lo novamente, irmão.
Ban disse e se aproximou de Merlin, dando-lhe um aperto de mão e um abraço.
— Fazia tempo que não fazia visitas. Mas já sei por que está aqui.
— Espero que não fique chateado, estive muito ocupado com meus experimentos nesses 18 anos. E também, estava esperando a hora certa.
De relance, ele pode ver a testa franzida de Faith.
Merlin olhou para ela com doçura e gentileza.
— Alteza. É um prazer finalmente revê-la após 12 anos.
— Sinto muito, mas não me lembro de você.
— Naturalmente.— Merlin ofereceu a ela um pequeno sorriso.
Pelos deuses, o olhar dela era fogo vivo. Como ninguém jamais reparou?
Contraditório ao olhar frio do príncipe de olhos cor de safira.
— Mas na que me conhece, suponho que não precisemos de apresentações da minha parte.
— De fato, não há necessidade. Me chamo Merlin.
Um brilho diferente tomou conta dos olhos da princesa de fogo e um sorriso satisfeito repuxou seus lábios.
— Agora faz sentido que tenha aparecido do nada. É um prazer conhecê-lo, Merlin. — uma pequena pausa.— Deve ter sido um prazer imenso prazer trabalhar ao lado do Rei Arthur. Se de fato ele tiver existido.
— Ah, ele existiu sim, minha jovem. — o mago caminhou até ela, ciente que Ban e Nesryn não iriam intervir.— Governou Camelot muito bem.
Por um tempo, ela apenas o encarou.
— Então quer dizer que... sou descendente direta dele?
Um aceno de cabeça.
— Fantástico.— disse ela, sorrindo de orelha a orelha.
— Por que veio até Avalon, princesa? Estávamos chegando nessa parte quando nosso amigo resolveu das as caras.— Disse Ban, e se recostou na cadeira atrás da mesa com vários papéis empalhados organizadamente.
— Preciso de ajuda.***
— Ajuda?
Ela assentiu para a rainha.
— Em que, exatamente?
— O país corre perigo. Oryoth caiu há cerca de três semanas. Dizem os relatos que foi parcialmente destruída e tomada por uma mulher de cabelos negros, com uma legião infernal.
Ela não tinha muita certeza se todos naquela sala respiravam. Até mesmo o grande Merlin, um dia considerado Mago supremo, ficou pálido ao ouvir aquilo.
— Então os boatos são reais...— disse Ban em tom baixo, enquanto passava a mão pelo queixo e encarava a própria mesa, que de repente parecera muito interessante.
— Já sabemos o que fazer. Temos nos preparado para isso há séculos. — disse Nesryn, olhando para o marido.
— Sim, desde a queda de Arthur. — concordou Merlin.
A expressão do mago estava sombria e quase petrificada.
Aparentemente, o problema era muito pior do que ela havia suposto.
Mesmo com o clima ruim, Faith ergueu o queixo e prosseguiu.
— Oryoth não tinha ligações com Camelot,— disse ela, com o tom de voz sério.— mas faz parte do continente. Era uma grande potência na sua região.
— Sabemos disso. Talvez as novas notícias não tenham chegado a Camelot ainda, mas Oryoth não foi a única a cair.
O coração de Faith se tornou chumbo em seu peito.
— Edimburgo, Theris, e Caravell também caíram. Três grandes cidades em uma semana. Devassadas pelas mesmas criaturas que destruíram Oryoth. — o tom de voz de Ban era sombrio, preocupado.
— Camelot com certeza será atacada, também.
Merlin acenou com a cabeça.
— Sei com quem estamos lidando, sei o que ela quer. Camelot será atacada, sim. Mas será a última cidade que ela irá.
— Como assim? — Faith franziu a testa para ele.
— Camelot é a capital da Bretanha, o lugar onde reside a descendência do fogo . E ela odeia fogo.
— Quem ela é, Merlin?
— Alguém que você não está pronta para enfrentar. E que não conseguirá sozinha, mesmo que tente.
— Quem ela é?— repetiu ela.
Merlin ficou a encarando por um bom tempo, alternando o olhar entre Ban e Nesryn. Em seguida ele suspirou.
— As Trevas Primordiais. Deusa da Morte. Ela é Escuridão Eterna.— respondeu Merlin.
— O nome dela é maldito. Não o pronunciamos aqui.
— É apenas um nome.
Merlin encarou a princesa com firmeza. Mas apesar disso, seu olhar era gentil.
— Nomes, palavras, tudo isso tem tem poder, menina. Mais do que você imagina.
— Como posso vencê-la, se não sei nada sobre ela?
Ban, Merlin e Nesryn trocaram olhares, como se estivessem conversando entre si.
— Você saberá. Em breve.
Disse Nesryn, e antes que Faith pudesse dizer qualquer coisa, Ban tomou a frente.
— Você treinará aqui.
— Mas terá companhia.— disse Merlin.
— Não tenho problemas com isso.
— Não sei se continuará pensando dessa forma quando o vir.
Faith encarou o mago. Confusão dançando em sua cabeça.
Com um estalo dedos Merlin trouxe para aquela sala quem ela menos esperava e queria ver.
Fúria queimou suas veias como mil sóis.
Mas o rapaz apenas encarou ela, ignorando a todos na sala.
Os olhos azul-safira dançavam em diversão, e um sorriso travesso e sedutor se formou em seus lábios bem desenhados e levemente carnudos.
Sua voz saiu como um ronronar. Baixa e suave, carregada de malícia.
— Olá, princesinha.
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Herdeiros das Cinzas (PAUSADO e em REESCRITA)
FantasyEm terras longínquas, à oeste de Camelot, um jovem príncipe vê seu reino ruir e seu povo morrer das piores formas possíveis. Seu treino de uma vida toda não foi suficiente para salvar seu lar. Em Camelot, a princesa, Faith, nasceu com um dom raro...