Capítulo 1

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Levantou-se com o corpo dorido da posição emque estivera nas últimas duas horas em frente ao computador a tentarescrever meia dúzia de linhas, foi tomar um duche e preparar-se parasair. Ficar ali era demasiado deprimente, solitário e doentio. Ateoria já a sabia, era preciso lutar contra ela, não se deixarficar a remoer na famosa maleita invisível, sugadora de ânimo,energia, alegria de viver, mas que ironicamente engrossava os bolsosa muitos profissionais e sectores, e João era um deles. O que seriade um Psiquiatra sem a Depressão? Um médico sem doentes com ogabinete às moscas.

Engoliu um dos mágicos comprimidos da alegriainstantânea e enfiou-se no duche. Naquela noite iria até ao Bar deum amigo de faculdade que em boa hora trocara os "doidos pelosnoctívagos", como gostava de se gabar quando conversavam.Chamara-lhe o "Pírulas", uma piada que nem todos atingiam, masum nome que ficava no ouvido, servindo de marketing perfeito paraquem queria beber uns copos e arranjar distracção do sexo oposto dealgum nível. Por ali só andavam tipas da Universidade ou jádoutoras, muito ou pouco desesperadas, normalmente sem grandesinteresses em romances eternos, como lhe convinha.




Entrou irradiando confiança e boa disposição,como sempre se apresentava em público, largando charme por todas asmesas e pequenos grupos de conhecidas que o bajulavam sem pudores.Era o protótipo do homem das comédias românticas que as raparigasviam desde a adolescência - sexy, educado, bem na vida, disponívele com uma história triste para contar. Não utilizava a sua condiçãode viúvo para engatar ninguém, mas por ali tudo se sabia, e o mitourbano crescia, sendo difícil não usufruir das suas vantagensfísicas. Se queriam tentar a sua sorte e convencerem-se de que oiriam curar do seu desgosto, quem era ele para lhes negar essatentativa? Estava certo de que não seria tão linear ou simples comonos filmes, o romantismo cego não fazia parte da sua personalidade,e a antiga disponibilidade para amar alguém tinha sido substituídahá muito tempo pelo cinismo calculista masculino, na pior acepçãodo conceito. Nem sempre lhe apetecia levar alguém a casa ao final danoite, mas naquele dia sentia-se especialmente motivado. Precisava dedesanuviar a cabeça.

- Olá Dr! – cumprimentou-o Salvador, oproprietário do Bar e amigo de longa data.

- Então Salvador, tudo bem? Um fino, fazfavor. – respondeu dando-lhe um aperto de mão sentido, enquanto seacomodava no banco alto junto ao balcão, a analisar o espaço com oolhar científico e decidido.

- Ontem houve aqui uma bronca... - lamentou-seo amigo colocando a bebida junto de João e inclinando-se parareservar a conversa apenas aos dois – Um tipo entrou aqui, jáquase de dia, estávamos mesmo a acabar de limpar. Eu estava lá emcima a contar o dinheiro e a meter no saco para levar ao banco,quando ouvi uns barulhos de copos a partir. "Ó que merda",pensei. Isto da noite é tudo muito lindo e divertido, mas temos deaturar cada boi! – explicava ainda chateado com o assunto –Estava todo lixado, drogas, de certeza, queria ir cagar! Vê tu bem!– exclamou furioso – Vá lá cagar na casa dele! Dei-lhe duaslambadas e ali o Janota resolveu o resto do problema. – acenou emdirecção ao segurança sorridente. Era dos poucos que trabalhavamna área dos murros e dos socos e mantinha um ar feliz, constatavaJoão, bastava-lhe o seu físico assustador para manter a ordem.

- Tu és demais... – confessou Joãodivertido com as histórias sempre cómicas de Salvador – Se ohomem vinha entalado, deixava-lo ir resolver o problema.

- Nem penses! Deixava-o uma vez, e depois?Vinha para aqui cagar todos os dias! – disse inflamado – Espera,tenho de ir ali servir aqueles tipos. Já volto. – afastou-se paraatender outros clientes que já o olhavam de lado à espera das suasbebidas e João voltou-se novamente para a frente, retomando a suaanálise feminina. Ainda não tinha concluído o scanner a todo oespaço quando uma loira generosa em atributos lhe sorriu e piscou oolho.

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