Não sabia bem quanto tempo já teria passado desde o momento em que Filipe caíra no poço, sentia-se completamente dormente e vazia. João acalmara devagar, e todas as esperanças de que o cão aparecesse a saltitar se tinham esfumaçado no ar. Chorara bastante tempo, pelos dois, pelo seu futuro sem Filipe, pela infelicidade que João trazia dentro dele, minando-o como um parasita silencioso. Alguma coisa despoletara nele a crise de pânico, mas Marta não conseguia perceber o quê, seria o facto do cão ter caído?, ela ter ficado com medo? Seria sempre assim a vida dele? Uma corda bamba de estados emocionais, que balouçava instável a tentar mandá-lo ao chão.
Passava-lhe os dedos no cabelo, consolando-o, quando João pareceu renascer, olhando-a com mágoa.
- Onde é que ele está? – perguntou abatido.
- Não sei... - respondeu emocionada, sentindo as lágrimas a voltar.
- Desculpa, por favor... - pediu-lhe com a voz fraca.
- Mas desculpar o quê, João? Tu não foste o culpado de ele ter caído. – reagiu Marta puxando-lhe o queixo para que ele a encarasse.
- Se eu não tivesse entrado em pânico ele não tinha morrido. – confessou, limpando uma lágrima.
- Mas como sabes que ele morreu? Pode estar apenas magoado, à espera que o encontrem. – disse Marta sem perceber o raciocínio dele tão derrotista.
- Mas ele morreu, Marta, à minha frente, entendes? Bastava eu ter esticado o braço... - gemeu, colocando a cabeça nas mãos, poisadas nos joelhos.
- Quem é que morreu, João? Diz-me. – pediu Marta, abraçando-o.
- O Filipe... o meu irmão mais novo. – conseguiu dizer, olhando-a desesperado.
- Achas que consegues andar? Tens de ir deitar-te e descansar. Vamos. – beijou-o na cara, fazendo força para não chorar ainda mais.
- Não, tenho de encontrar o Filipe. – disse-lhe decidido. Levantaram-se e começaram a percorrer o caminho da água, na esperança de que o cão tivesse sido arrastado pela corrente no meio das pedras.
Marta não estava certa de que caminhar rio abaixo fosse a decisão mais inteligente depois de se sofrer uma crise de pânico, mas sabia que João precisava de encontrar Filipe com vida, pelo menos aquele, pensou, engolindo em seco. O que teria acontecido com o irmão para se afogar?, que idade teriam?, há quantos anos ele viveria com aquela culpa? Não lhe admirava que tomasse tanto anestesiante. A dor emocional podia ser a mais difícil de ultrapassar de todas.
- Vamos voltar, João, já andámos imenso, daqui a nada não conseguimos encontrar o carro. – disse estoirada da caminhada sinuosa entre os calhaus gigantes que ladeavam o rio.
- Espera, - exclamou agitado – acho que está ali qualquer coisa. – correu de pedra em pedra, para alcançar a mancha cinzenta e peluda que se via ao longe, do outro lado da margem, saltou para dentro de água, conseguiu chegar ao animal e pegou-lhe com cuidado. Parecia bastante ferido, com uma pata torta, partida em dois, e a respiração ofegante e difícil.
- É ele? É ele? – gritou Marta, saltando na pedra, a sentir uma felicidade e um alívio que lhe pareciam saltar da boca.
- Sim, conseguimos. – exclamou João, sorrindo de alegria por ter conseguido salvar o cão que ela adorava. – Ajuda-me a subir. – pediu, com dificuldade para trepar as pedras com o cão pesado nos braços.
Marta puxou-os com força, mas cuidadosa, para não magoar ainda mais o seu querido Filipe, que a olhava com tristeza.
- Meu amor... - beijou o cão com carinho, ajudando João a sentar-se um pouco numa pedra mais alta e a recuperar as forças para conseguirem levar o animal até ao carro e procurarem um veterinário. Olhou o salvador da sua companhia de tantos anos e beijou-o também com força. – Obrigada.

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A Mala Vermelha
Romansa"Levantou-se com o corpo dorido da posição em que estivera nas últimas duas horas em frente ao computador a tentar escrever meia dúzia de linhas, foi tomar um duche e preparar-se para sair. Ficar ali era demasiado deprimente, solitário e doentio. A...