Capítulo 26

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- João, eu amo-te... - Isabel beijou-o, depois de o olhar profundamente, cravando-lhe uma angústia quente e funda no esterno, que o sufocou. A garganta seca dificultava a respiração e levantou-se, fingindo um mal estar repentino provocado pelo jantar sumptuoso que tomaram no quarto do hotel. Ela queria privacidade, intimidade, cumplicidade, e João tentou até não aguentar mais. "Amo-te..." era o limite da sua capacidade, pensou, molhando a cara com água fria na casa de banho, onde se refugiou. O pânico começava a alastrar-se na sua mente, e o corpo reagia como uma bomba. Recordava-se daquilo, pensou, obrigando-se a respirar fundo. Picadas leves percorriam-lhe os braços lentamente em direção às mãos, uma sensação de leveza nos joelhos parecia retirar-lhe as forças das pernas, o que disparou o pânico. Tinha de sair daquele quarto rapidamente, apanhar ar, já não suportava o perfume dela, que o estrangulava desde que fechara a porta do quarto mais cedo. Todo o corpo de Isabel estava envenenado com o cheiro agressivo a flores, e tinha-o beijado durante horas, lembrou-se assustado, estava contaminado, iria morrer. Abriu a porta da casa de banho e precipitou-se à procura do telemóvel, vestiu uma t-shirt, calçou-se e disse-lhe que ia tentar comprar champanhe. Foi o que lhe surgiu no momento. Precisava de se afastar dela, sem levantar suspeitas. Correu pelo corredor até encontrar a porta que dava acesso à zona exterior da piscina. Respirou como se estivesse submerso há alguns minutos, com os pulmões a exigir oxigénio furiosamente. Colocou-se de cócoras, para poupar as pernas que pareciam ceder com o peso da sua angústia. Precisava de a ouvir, de ouvir aquele mantra que só ela sabia, pensou, carregando no número dela, tinha de a gravar a cantar aquilo, acalmava-o. - Estou, Isabel? - João?, o que aconteceu? O que se passa? João?... - Desculpa. - João?...De todos os meninos, aquele era o mais bonito e mais bem comportado. Diziam que parecia um anjo, de cabelo claro, olhos azuis, bochechas vermelhas... Mas um dia, veio uma fada e quis fazer-lhe uma marca, para o nomear anjo de Deus. O menino gritou, esperneou, tinha medo de ficar feio e que já não gostassem dele! Os pais, tristes com aquela reação, deixaram de lhe fazer as vontades, e o menino deixou de acreditar de que era o preferido. O seu cabelo escureceu, os dentes pequeninos e imaculados começaram a cair, aparecendo outros no seu lugar, maiores e estranhos, borbulhas vermelhas encheram as suas bochechas, e o menino começou a perder a alegria da primeira infância. O seu irmão mais novo, transformou-se num menino ainda mais bonito do que ele fora um dia, e ao contrário de si, ficou muito feliz quando a fada lhe fez a mesma proposta. Deixou que ela lhe fizesse a marca dos anjos, mas como pagamento, teria de voltar com ela para o céu. Os pais e o primeiro menino choraram muito, suplicando para que ela lhe retirasse a marca e o devolvesse à terra, mas ela não quis saber. Aquele menino queria ser anjo, e os anjos só podiam viver perto de Deus............ quem está livre és mesmo tu! O menino ria, deitando a cabeça para trás, em provocação, mas adorava-o, não conseguia sentir raiva dele. Tão bonito quanto atrevido, sempre a sorrir a cada partida, sem nunca perder a energia infantil, como um pião giratório, que enlouquecia tudo e todos. Anda cá! Gritou, correndo no seu encalço, excitado com a fuga. Queria ver-lhe o rosto, perceber porque se sentia tão feliz perto dele. Sabia que o conhecia, só queria apanhá-lo a tempo de o olhar, pois sentia-se a acordar, estava quase lá, a pequena mão escapava-se-lhe como se estivesse besuntada de manteiga, mas nesse momento percebeu que não, era geleia, de marmelo, que a avó fizera de manhã e lhes dera dentro de um pão, que cheirava a amor e felicidade, o cheiro dos lanches da avó Lena...........Com mais força! – gritava-lhe o irmão mais novo, a pedir que João lhe empurrasse o baloiço. – Daqui a nada sais a voar! – respondeu, dando um impulso ainda maior e rindo com o espírito corajoso de Filipe. – Meninos! Venham jantar! – chamou a mãe naquele tom melodioso característico das horas de comer. Correram os dois para ver quem chegava primeiro. Filipe detinha o recorde, orgulhoso e fazia sempre uma festa quando atingia a porta mais depressa que o irmão mais velho. A casa cheirava a assado, o prato preferido dos dois. Continuaram a corrida para ver quem lavava as mãos mais depressa, mas o pequeno Filipe sorria-lhe esticando-se a pedir ajuda para chegar ao sabonete. – Dá cá esses dedinhos marotos!.......- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe...........Quem está livre és mesmo... tu! - o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e fugiu – Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido. Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo na direção da água. Um medo apoderou-se do seu corpo, queria dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr, mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente, enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus..........- Não... não pode ser... não... - dizia com a cabeça nas mãos, sentado no chão e balouçando-se ritmadamente. Sentia-se a enlouquecer, não queria aceitar aquilo, porque se o fizesse cairia no desespero, e não sabia se conseguiria voltar de lá inteiro. – Desculpa filho... - disse o pai que parecia um fantasma. – Agora somos só nós os dois. – concluiu sem emoção, como se falasse de algo trivial. João levantou-se e repeliu-o, aquela figura patética e inútil que a tinha deixado sucumbir à doença, porque não fora ele em vez da mãe? Gritava interiormente revoltado. Naquele dia jurou não permitir que outras pessoas se matassem de tristeza, iria ser Psiquiatra, curá-la-ias daquela doença e conseguiria fazê-las ver o lado bom da vida. João não carregaria para sempre a culpa de ter deixado Filipe afogar-se, e com ele, ter morrido uma parte da sua mãe."

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