Capítulo 18

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- Amnésia? Como assim? Não se recorda de nada? – perguntou Nélia, surpreendida com as novidades que a tia contava enquanto arrumava a cozinha depois do jantar.

- Pobrezinho, diz que foi do choque de ver o cão morto... - lamentou-se, sentindo uma pontada de culpa com aquele trágico acontecimento – Se eu sonhasse que aquele homem era um criminoso... - fungou, limpando os olhos com o pano da loiça – parecia tão sério...

- A tia não tem culpa de nada! – exclamou exagerando no tom indignado – E o Dr está na melhor clínica privada de Coimbra, - acrescentou com escárnio – com os preços daquilo até podem devolver a memória a um morto!

- Nélia! Por favor,... isso lá são coisas que se digam.... O Dr João não está morto! – benzeu-se, olhando reverencialmente para o tecto da cozinha. – Amanhã tenho de o ir ver... coitadinho, sem família que tome conta dele. Já falei com o médico, o Dr César, e ele disse que agora já podemos vê-lo. Já lá vão três semanas... e nada... - explicou, referindo-se à recuperação da memória do patrão – mas já é seguro receber mais visitas.

- Se quiser posso ir consigo... - sugeriu, fingindo pouco interesse – Pode ficar emocionada e precisar de ajuda. – sentia uma curiosidade mórbida em ver o aspecto com que o homem arrogante que conhecera, estava depois de quase um mês a calmantes e outras drogas, num quarto de hospital.

- Obrigada querida, - surpreendeu-se coma simpatia da sobrinha – gostava muito de não ir sozinha. Aqueles sítios provocam-me calafrios.... – confessou, recordando a época negra em que a irmã e mãe de Nélia fora internada compulsivamente na Psiquiatria dos Hospitais de Coimbra.

- Então fica combinado. Precisa de ajuda? – perguntou cinicamente, depois de quase tudo estar limpo e arrumado pela tia.

- Deixa estar, vai descansar, eu termino isto aqui. – respondeu, passando o pano maquinalmente no balcão imaculado. Suspirou e esfregou mais um pouco, matutando naquela sobrinha que por vezes ainda a conseguia surpreender positivamente. Talvez a idade lhe estivesse a trazer juízo, concluiu, pondo aqueles pensamentos angustiantes de parte, ao mesmo tempo que poisava o pano. Desligou a luz da cozinha e despediu-se da santinha que a velava no corredor da casa, dirigindo-se ao quarto, num ritual antigo que a mantinha segura e em paz. Não conseguiria dormir sem a proteção da "Nossa Senhora de Fátima", ou sequer passar por ela sem a admirar por breves segundos, tão linda e pura, de olhos tristes e empáticos, testemunha de tantos anos de sofrimento e dores, sempre ali para a consolar.



João acordou com as vozes animadas que enchiam o corredor, ainda confuso com o último sonho que o perseguia há várias noites consecutivas. Uma mulher morena de tranças enormes embalava um pequeno elefante com variados braços, que o rodeavam com carinho, silenciando-o. A pequena criatura chorava de mimo, ou outra criancice qualquer, exigindo colo, como os pequenos bebés humanos, e apenas se acalmava quando ela lhe satisfazia o pedido. Uma voz melodiosa adormecia a cria elefante, entoando sons de uma língua estranha, mas familiar, sem sentido, que o acordavam sempre que tentava acompanhar a canção, ficando com a música presa naquele limbo de sonho e consciência, desaparecendo da mesma forma rápida com que lhe surgia no sono.

Reconhecia a voz de barítono do seu médico, bem como o falsete da mulher dele, que trabalhava como voluntária no hospital e lhe fazia companhia durante algumas horas por dia. Uma presença agradável que o serenava, por já a sentir familiar. Tentava perceber o que falavam, e uma terceira voz mais moderada entrou na conversa, contrastando com o tom feliz do casal de meia idade. Gostava do som com que a mulher terminava as frases, musicando certas palavras, deixando-lhe claro de que tinha um sotaque diferente do que normalmente ouvia no hospital. Recordava-se de já a ter ouvido antes, mas não sabia bem onde, surgindo-lhe de repente a imagem de uma enfermeira pálida que vira há algumas semanas no seu quarto, mas que misteriosamente nunca mais aparecera. Desde que tinha recuperado a consciência suficiente catalogava caras, nomes, sons, feitios, como exercício mental de memória, na esperança de se recordar de si mesmo, da pessoa que fora antes de ter acordado naquele quarto. Tudo lhe era dito com cautelas e reservas, como se o seu passado desconhecido o pudesse transtornar, e esse facto angustiava-o bastante. O que teria acontecido de tão grave na sua vida para que ninguém se atrevesse a contar-lhe? Temeriam que enlouquecesse ou não aguentasse a verdade? Chamava-se João, não tinha parentes, era psiquiatra, pela lógica e como ainda não tinha aparecido para o visitar, não tinha mulher ou namorada, filhos muito menos. Um miserável sozinho no mundo, com dinheiro para pagar a diária daquela clínica cara. Era tudo o que sabia de si mesmo. Uma coisa era certa, sentia-se incompleto, não pela falta de pai ou mãe, que já de si era triste, mas uma parte de si parecia ter sido arrancada. Talvez a sua mulher falecera e isso o levara até aquele quarto de hospital, matutava por vezes. Só isso explicava a sensação de saudade que o corroía. Saudades de um corpo, de uma mulher que um dia deveria ter tido. Porque sentia falta dela, e isso crescia dentro de si, como um balão de ar que lhe sufocava o coração de dia para dia. Não precisava de pai nem mãe, mas queria-a de volta, mesmo que apenas o nome de uma pessoa que existira em tempos.

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