- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe... Acordou sobressaltado, com a sensação de culpa, como se tivesse cometido um erro. Que raio de sonho... aquele miúdo aparecia-lhe outra vez, mas agora era seu irmão, vira-o quase perfeitamente, e uma família à beira rio a fazer um piquenique, todos alegres, mas demasiado longe para que os conseguisse analisar. Levantou-se e foi tomar banho, pensando naquele pormenor do avô engenheiro agrónomo, seria aquilo uma recordação ou só imaginação? O que teria acontecido à sua família?, ainda era novo, deveria ter pelo menos os pais vivos, ou tios, primos... Aquelas dúvidas assombravam-no, naturalmente, desde que recuperara a consciência e começara a pensar mais claramente. À medida que os remédios do internamento iam sendo mais espaçados e menos fortes, tudo aquilo o perseguia. E mesmo passado bastante tempo desde que tivera alta, ainda não sabia nada sobre si, nem havia resposta em sua casa, álbuns, cartas, postais, nada. Aquele sítio parecia asséptico e alienígena, e isso consumia-o cada vez mais. Precisava de calor, de cores, de um pouco do que o fazia sentir a casa da Ganesha. Acabou o banho e decidiu vestir a roupa mais prática que encontrasse. Ia voltar à jardinagem voluntária, não queria ali ficar nem mais um minuto. Levaria as coisas para fazer o café, pão, fiambre, e algo para almoçar. Tinha visto lá no quintal umas beringelas a passar do ponto, serviriam para assar, só precisava de levar queijo mozzarela e uns orégãos. Tomates maduros também lá havia, e tinha mesmo de os comer, o frio começava a dar cabo de tudo. Depois de muito procurar pelos armários da casa, encontrou um chapéu estranhamente parecido com o do sonho, senão idêntico, com aspecto de ser uma recordação, com bastantes anos e marcas de uso. Colocou-o na cabeça e sentiu-se animado com aquele dia. Reuniu tudo o que precisava para se manter alimentado na quinta e só por prevenção, e porque poderia ficar muito cansado e dar-lhe o sono, colocou a medicação da noite no saco. Voltou atrás e meteu roupa interior e algumas t-shirts também, e se se sujasse? Teria de ter roupa para depois trocar... Mas se ia lá tomar banho teria de levar o seu gel de banho, e escova de dentes... podia ser necessário... Estava quase a sair de casa quando se lembrou de que tinha deixado a "ganesha" no seu antigo quarto, onde agora dormia a namorada sozinha. Entrou pé ante pé, pegou na estatueta e saiu, satisfeito por se ter lembrado daquele objecto. Seria suficiente aquele café?, perguntou-se, imaginando que tinha ali uns bons dias longos de trabalho e precisaria de se manter bem ativo. Pegou em mais dois pacotes ainda fechados, guardou-os e saiu, fechando a porta devagar, suspirando de alívio. Como é que alguma vez podia ter sido feliz ali? Era impossível...
- Bom dia! - acenou ao sorridente vizinho que todos os dias passava pelo portão da quinta no que parecia a João ser uma mistura de curiosidade, desconfiança e passeio higiénico. Trazia consigo um cão grande à trela, talvez para não se sentir tão desprotegido, já tinha uma certa idade, e todos os dias se demorava um pouco mais na passada, atrasando-se propositadamente, a ganhar coragem de esticar a conversa com aquele jardineiro empenhado. João sabia que aquilo era de loucos, estar a tratar de um jardim de uma casa abandonada, viver lá dentro como se tudo lhe pertencesse, mas a sua vida não era normal em nenhum sentido, aquele era só mais um pormenor excêntrico. E fazia-lhe bem, não queria voltar para o apartamento, lá aborrecia-se. Ainda não tinha aparecido a polícia, por isso, mantinha-se descansado e internamente absolvido.- Essas courgetes tem crescido que é uma maravilha! - comentou o velho, sorrindo-lhe e estacando do outro lado da grade à espera de conversa.- Pois estão! Crescem com uma rapidez, se as regar bem, então... não quer levar umas? Já não sei o que fazer a tanta courgete... - sorriu, esfregando a testa com as costas da mão.- Também lá tenho, obrigado. Sabe o que podia fazer? Todos os sábados há um mercado livre de agricultura biológica no Jardim Botânico. Porque não vai lá despachar isto tudo? Não deve ser só courgetes que este terreno dá a mais... - sugeriu.- Isso é uma excelente ideia! - exclamou, poisando as mãos no cabo da enxada e sentindo-se animado com aquela sugestão. Detestava a ideia de deitar fora toda aquela abundância. - Talvez vá lá amanhã, há aqui tanta coisa que se vai estragar daqui a uns dias... - pensou em voz alta, olhando em redor. - Obrigada pela sugestão.... Sr...?- Joaquim. - esticou a mão por dentro da grade a formalizar aquela apresentação e à espera de um nome de volta.- João, prazer. - respondeu, satisfazendo a curiosidade do "seu" vizinho.- Bem, então bom trabalho! - acenou em despedida – Vamos, Fiel! - continuou a sua caminhada matinal, ligeiramente aliviado por não sentir má impressão do rapaz. Talvez fosse um empregado da menina Isabel, embora achasse difícil que um jardineiro viesse trabalhar de BMW, e não um qualquer, um carrão demasiado vistoso, coisa para custar o valor de uma casa... E mais que as posses do rapaz, o que realmente o intrigava era o facto de que muitas vezes se apercebera de que ele pernoitava ali. Conhecia a casa, só tinha um quarto, dormiria ele no quarto da patroa? Era um mistério cada vez mais complicado. O melhor seria tirar as suas dúvidas diretamente com os Fonte Pereira e Melo, não queria ser cúmplice de nada.- Isabelinha, o seu pai pediu para avisar de que quer falar consigo, no escritório. - murmurou gravemente Adelaide, como se o local da conversa fosse o presságio de algo muito sério.- Obrigada Dazinha. Sabe do que se trata? - perguntou, terminando o café aromático que a consolava daquele frio de fim de outono de Castelo Branco.- É claro que não! - explicou, retomando as suas tarefas na cozinha, sob o olhar da sua menina que finalmente recuperara o apetite e comia satisfeita o pequeno almoço caprichado. - Apenas recebeu um telefonema de Coimbra, eu atendi e passei-lhe a chamada. - olhou-a discretamente, sabia que aquele pormenor a iria incomodar. - Era o seu vizinho, o Sr Joaquim. Deve ser alguma coisa sobre a sua casa. Não se preocupe.- Afinal sabias qualquer coisita. - gracejou, sorrindo-lhe provocadoramente. - Obrigada, estava maravilhoso o café. - deu-lhe um beijo de fugida e respirou fundo para ir enfrentar a tal conversa. O pai era sempre muito reservado e raramente desperdiçava tempo, se a chamara teria com certeza um bom motivo. Quantas vezes tinha desejado ser filha de alguém mais simples e acessível, menos importante e ocupado. Só lhe sobravam sempre as conversas difíceis ou os raspanetes.

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A Mala Vermelha
Romance"Levantou-se com o corpo dorido da posição em que estivera nas últimas duas horas em frente ao computador a tentar escrever meia dúzia de linhas, foi tomar um duche e preparar-se para sair. Ficar ali era demasiado deprimente, solitário e doentio. A...