Quando lhe disseram que a sobrinha estava a viver com um médico em Coimbra nunca lhe passou pela cabeça que Nélia pudesse traí-la daquela forma. Rosário tinha as mãos e as pernas a tremer, e tentava equilibrar-se atrás da carrinha estacionada do outro lado da rua do prédio do Dr João. Esperava que um dos dois aparecesse na rua, ou na varanda, só para confirmar as informações que lhe tinha dado uma antiga amiga que conhecera enquanto trabalhara exclusivamente para o "Dr", também ela empregada de longos anos de uma família do primeiro andar. Partilhavam histórias que animavam os seus dias, sempre que não se gostava de alguém do prédio ou de uma pessoa que frequentava a casa onde trabalhavam. Fátima telefonava-lhe desde que Rosário fora dispensada do seu trabalho, e semanalmente lá conversavam sobre o que se passava no prédio, como se ainda se encontrassem a meio do dia nas escadas comuns, enquanto gozavam da pausa de almoço e da ausência dos patrões. Uma amiga que estimava, e por isso, tinha em grande conta, nunca duvidaria da sua palavra. Falava-lhe numa Isabel de nariz empinado, mas Rosário só tinha conhecido a Isabel simpática e sorridente, que tinha feito um milagre e entrado naquela casa. Tinha poucas, mas boas memórias dela, mesmo ligeiramente magoada por ter sido demitida, porque sabia que a culpa da desgraça que assolara aquela casa tinha sido sua. Quando abriu a porta ao homem bem falante e ele lhe disse que ia levar o cão dali para fora, Rosário nem pensara duas vezes, ficara tão aliviada por se ver livre do bicho que nem refletira ou confirmara com o "Dr". Ainda sentia uma leve azia todas as vezes que recordava a voz aflita do patrão ao telefone a perguntar-lhe pelo cão. Tinha muitos remorsos do que fizera, mas se aquilo que ali tinha ido confirmar fosse verdade, a sobrinha ia aprender uma lição, e não havia "Dr" nenhum que a fosse segurar. Encostou-se à carrinha, para descansar a coluna da posição em que estava há algumas horas a espreitar, mas nem precisou de se esconder, o carro do seu antigo patrão aparecia ao virar da esquina, e Rosário conseguiu vê-los aos dois, que nem a olharam, enquanto a viatura passava por ela devagar em direção à porta da garagem. Nélia estava sentada no lugar do "morto", toda sorridente e bonita. Sempre fora uma estampa, concluiu tristemente, como se sempre tivesse previsto que a beleza da sobrinha fosse a sua maior maldição. Nunca se esforçara em nada, na escola, em casa, na vida, pensava que bastava vestir-se bem e arranjar-se e tudo surgia caído do céu. Ali estava a prova, de como uma rapariga tonta podia viver enganada, e como Rosário falhara com ela e com a irmã. Nélia podia estar iludida com a vida, mas não ia enganar o Dr João, pensou decidida. Contornou a carrinha e dirigiu-se à porta do prédio, tocando para a casa onde Fátima trabalhava, ganhando assim tempo para chegar primeiro ao apartamento e surpreender a sobrinha, já que o Dr João nem sequer se lembraria dela.
- Olá César... - cumprimentou Isabel, sem grande entusiasmo ao ver chegar o psiquiatra. Nunca mais acabava aquela novela na sua vida, remoeu, guardando no jipe as caixas de frutas e legumes metodicamente ordenados com um sentido estético que a deixava enternecida. - Vou vender isto ao Botânico, há lá uma feira de produtos biológicos... - explicou.- Curioso... - sorriu na direção das caixas - Ele é mesmo artista, não é? E mais curioso, sabes que ele deu-se a este trabalho todo para ir a essa mesma feira?- Onde queres chegar com essas "curiosidades"? - lançou a sentir-se enfurecer com aquelas insinuações. - Eu sei perfeitamente quais são as qualidade dele! Mas caso seja necessário lembrar-te, ele vive com a "Isabel"! Está mais feliz que nunca, segundo o Comandante Santos, aquele baboso com quem tive de falar. Ele estava particularmente enfeitiçado pela "mulheraça" do João! - bateu a porta da mala do jipe com força.- Isabel, não fiques zangada, por favor. O Santos é um tolo, - explicou paternalmente - e o João ficou cheio de medo de se encontrar preso, está momentaneamente esperançoso com a segunda oportunidade que a vida lhe deu. - ironizou.- Então que faça bom proveito. - rematou - Eu estou momentaneamente em Coimbra, e só aqui vou ficar hoje porque tenho pena de deitar tudo isto para o caixote do lixo, que era o que devia fazer, se tivesse juízo. - encarou-o, continuando os seus lamentos catárticos - Mas sou uma parva, cada vez mais me convenço disso. Devia estar furiosa porque o João me sujou a casa toda e desarrumou mais que trinta miúdos deixados à solta num quarto de brinquedos. Tenho tudo de pantanas, a cama revoltada, é preciso lavar os lençóis, tirar a presença dele ali de dentro, aspirar, limpar o pó, e em vez de ir formalizar a queixa na PSP para ele aprender, só quero enfiar-me ali dentro e chorar agarrada à almofada! - berrou.- É por isso que te vou pedir um último favor. - agarrou-lhe nas mãos frias - Não vás já embora para Castelo Branco. Ele vai voltar, garanto-te. Eu conheço-o, não vai aguentar a rapariga muito tempo. Até acho que é agora, quando ele baixar a guarda com ela que tudo vai terminar. - sentia-se ligeiramente carrasco a dizer aquilo, mas era o que sentia verdadeiramente.- Então devo aqui ficar à espera que ele ande às cambalhotas com ela e se recorde de mim? - gemeu incrédula.- Não... - mentiu - Aguarda só uns dias. Ele fugiu para aqui porque só se sentia bem neste local, sem saber porquê. A vida no seu apartamento era-lhe insuportável. Inconscientemente ele recorda-se do que passou aqui contigo, entendes? Quando descobri que era aqui que ele fazia a jardinagem secreta de que nos falou a mim e à Lisa fiquei felicíssimo. - explicou carinhosamente.- César... eu sei que gostas dele como um filho, e por um filho fazemos coisas impensáveis. O que me estás a pedir é mais que isso, é cruel e impossível. Não vou sacrificar a minha felicidade por ele, por muito que me custe, desta vez vou pensar primeiro em mim. - entrou dentro do jipe e despediu-se com vontade de lhe passar com o carro por cima dos pés. Os homens conseguiam ser brutais, mesmo sem lhe bater.

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A Mala Vermelha
Romance"Levantou-se com o corpo dorido da posição em que estivera nas últimas duas horas em frente ao computador a tentar escrever meia dúzia de linhas, foi tomar um duche e preparar-se para sair. Ficar ali era demasiado deprimente, solitário e doentio. A...