Capítulo 20

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Há muito tempo que não acordava tãoesperançosa com o futuro. A ideia de visitar João na clínica, lhecortar o cabelo como prometido, conversar com ele, era tão doce,que lhe iluminou o início da manhã, como já não acontecia hámeses. O dia de chuva que se adivinhava, frio e desconfortável nãoa incomodavam minimamente. João esperava-a, iriam estar juntos, efelizmente a amnésia não o tinha transformado em ninguémdiferente. Continuava o mesmo, pensava satisfeita, apenas não serecordava de nada, nem das coisas boas, nem das más, e isso poderianem ser assim tão negativo. Tinha fantasmas terríveis que oassombravam desde adolescente, libertara-se de tudo, agora Isabelteria de o conquistar, uma vez mais. Isso parecia-lhe um pequenopreço a pagar pela paz de espírito que a perda de memóriaprovocara. Se havia coisa que tinha aprendido com a Dazinha eraaquela forma positiva de transformar uma situação dramática numapossibilidade de novas perspectivas. "Só não há soluçãopara a morte, menina Isabelinha!", diria ela, resolvendo oproblema instantaneamente.

Fechou o jipe e encaminhava-se para oedifício da clínica, quando viu Nélia estacionar o carro de Joãoe estacou confusa. Estaria a ver bem?, seria um carro igual?. Césarapareceu no seu raio de visão, no que lhe pareceu serem minutos,depois da assombração com a loira espampanante. Isabel saiu dotranse e correu até o alcançar, a sentir uma nuvem agoirenta acobri-los, na eminência de uma carga de água. - Dr César!- gritou,temendo dar de caras com a mulher no átrio da clínica.

- Isabel... - sussurrou desanimado.Tivera pesadelos comaquela situação, até a mulher o obrigar a tomar um chá calmante ameio da noite. Teria de explicar à verdadeira Isabel que não foracapaz de lidar com a outra, e agora João vivia uma mentira.

- Dr César... - arfou com o esforçoda corrida – Conhece aquela mulher? Aquele é o carro do João, nãoé?, ou estou doidinha?!... É que me parece mesmo o carro... -lançou sem parar, já com as pernas a tremer.

- Isabel... temos de conversar... -confessou, agarrando-lhe paternalmente no antebraço e conduzindo-apara o elevador, enumerando mentalmente o seu discurso e pedido dedesculpas.



- Querido... bom dia! - ronronou Néliaao entrar sem bater, interrompendo uma conversa entre João e umaenfermeira que o medicava antes do pequeno almoço.

- Olá Isabel... - esforçou-se porsorrir – Aqui tão cedo? - Uma estranha sensação invadiu-lhe opeito, deixando-o levemente aborrecido com a visita da namorada.Tinha pensado em dormitar um pouco antes do corte de cabelo prometidopela enfermeira albicastrense. Não sabia se Isabel ali estava só depassagem ou se ficaria algum tempo, o que o deixou amuado. Sentia-sesem paciência para conversas.

- Vim ver como te sentes, se precisasde alguma coisa... tenho ginásio agora de manhã, mas não queriadeixar de te ver primeiro... - ronronou, encostando-se a ele semcerimónias e pudor, sem se importar com a presença da enfermeiraque arrumava os seus utensílios bastante corada.

- Isabel... - olhou a enfermeiraenvergonhado, tudo aquilo lhe parecia não ser bem o tipo decomportamento que gostava.

- João, a senhora enfermeira estáhabituada a ver esposas apaixonadas com saudades, não está? -olhou-a com firmeza e um certo atrevimento, sem se afastar do médicoconstrangido.

A enfermeira saiu sem responder,deitando um olhar duro à visita tão mal educada, e deixou-os a sós,apressando-se por ir alertar o Dr César dos novos desenvolvimentos.

- Pronto, já estamos sozinhos. -sorriu-lhe satisfeita – Queria mesmo falar-te em privado. - disse,modificando o tom de voz, denunciando um tema mais sério – Sabesaquele cartão que eu tinha da tua conta bancária? Olha, perdi-o...e agora preciso de levantar dinheiro para pagar o ginásio e nãoconsigo... Eu avisei-te que devias ter-me posto como 2ª titular daconta, afinal, foi lá que depositaste o dinheiro que fizeste com avenda do meu apartamento. - recriminou-o, fingindo-se ofendida com aação – Eu logo vi que isto podia dar problemas... tudo bem queíamos comprar uma casa os dois, e metade sou eu que vou pagar, maseu podia ter-te dado o dinheiro só na altura... agora estou de mãose pés atados. Explicas-me como vou sobreviver até tu voltares paracasa?

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