⚘. dezenove

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São quase oito da noite quando desperto de meu cochilo no sofá, ao ouvir o som de passos ruidosos subindo e descendo escadas e andando de um lado para o outro da casa como se não soubesse qual direção seguir.

Levanto-me devagar e acomodo minha cabeça no encosto do sofá, espiando a movimentação agitada da filha do médico que, devo admitir, está muito bonita.

Rafaella está com os cabelos amarrados em um rabo-de-cavalo e está usando um vestido azul-marinho que lhe faz parecer mais feminina ㅡ não que ela não seja, é claro.

ㅡ Eu te acordei?

Os olhos dela estão esbugalhados, como se ela não esperasse me acordar fazendo tanto barulho. Eu adoraria ser irônico e dizer que ela deveria ter batido as portas também mas prefiro voltar ao meu estado relaxado e me deito novamente no sofá.

ㅡ Você vai sair? ㅡ pergunto, não que eu esteja preocupado com a possibilidade de ela ser sequestrada por um maníaco quando ela está tão bem vestida ㅡ É meio tarde para dar uma volta... ou você vai sair com o seu namorado?

ㅡ Ele não é meu namorado ㅡ ela insiste.

ㅡ Então é melhor dizer isso para ele, porque não é esta a impressão que ele passa.

Ouço ela me xingar baixinho e abro um sorriso satisfeito. Por algum motivo que desconheço, sinto algo em meu estômago quando a irrito, a mesma coisa que senti quando, por muito pouco, não ultrapassamos a linha permita por qualquer pai no momento em que deveríamos estar vendo um filme de terror clichê cheio de bichos de oito pernas.

ㅡ Eu vou sair para comer algo.

ㅡ Sozinha? ㅡ reviro os olhos. Quem no mundo se arruma tanto para comer solitariamente?

ㅡ Sim, sozinha. Mas não se preocupe porque irei pedir algo para você.

ㅡ Não precisa ㅡ agito as mãos no ar, negando qualquer possibilidade de eu terminar atendendo um entregador de pizza quando deveria estar comendo coisas saudáveis por causa do coma ㅡ Eu vou te fazer companhia. Não quero que as pessoas dessa cidade acreditem que você vive uma vida miserável, saindo desse jeito para comer sozinha.

ㅡ Você está se preocupando demais comigo ㅡ ela resmunga, e aquela coisa estranha ronda pelo meu estômago outra vez.

ㅡ Era para ser o contrário, mas você não está colaborando muito.

Levanto-me do sofá a contragosto e vou até o banheiro, onde me certificou de que meu cabelo está decente e que minhas roupas não estão amarrotadas. Seria realmente desagradável se Rafaella fosse vista em um restaurante com um cara mal vestido ㅡ mesmo que esse cara em questão seja um verdadeiro espetáculo ambulante.

ㅡ Vamos logo ㅡ digo à ela, que aparentemente não está nem um pouco feliz com o fato de que irei atrás dela ㅡ Estou morrendo de fome.

ㅡ Para de falar em morte.

A ideia de sair para comer de Rafaella sai pela culatra no exato momento em que passamos próximo à um parquinho. Mesmo depois de entrar na faculdade, eu ainda mantive hábitos estranhos de querer andar em brinquedos e jogar jogos de azar em barraquinhas.

Enquanto sou todo sorrisos, minha acompanhante aparenta estar prestes a me matar se eu não obedecer seus planos noturnos à risca.

ㅡ Você precisa se divertir mais ㅡ pego em sua mão involuntariamente e a arrasto pelo gramado do espaço do parque de diversões ㅡ É melhor dar um jeito nesse seu bico ㅡeu a alerto, assim que percebo que está de cara amarrada ㅡ Os vendedores não vão acreditar que somos um casal e as coisas podem ficar um pouco caras.

Ela revira os olhos, mas há um pequeno vestígio de um sorriso em seus lábios e isso faz aquela coisa em meu estômago atacar novamente.

Solto a mão dela por conta disso e, fingindo que está tudo sob controle, digo que irei lhe comprar um algodão doce enquanto ela aguarda na fila da roda gigante, ao que Rafaella assente sem pensar duas vezes.

Caminho até a barraquinha de uma senhora que está fazendo algodão doces de todas as cores que lhe são possíveis cheio de empolgação, por sorte não há fila e sou atendido assim que chego à ela. Peço por dois de cor azul e, enquanto espero, observo como está o andamento de minha acompanhante na fila do brinquedo à distância.

Algumas garotas se aproximam dela e, por alguma razão, tenho um pressentimento ruim quando uma delas, de cabelos pretos abre um sorriso malicioso. É como se eu já tivesse visto esse rosto antes, mas não lembro onde nem quando.

ㅡ Aqui está, querido ㅡ diz a senhorinha da barraca de algodão doce ㅡ Não precisa pagar, considere isso como um presente de parabéns. A sua namorada é uma menina de coração puro.

Abro um sorriso para a vendedora, ciente de que nossa atuação de casal adolescente está gerando ótimos frutos.

Caminho de volta para a fila da roda gigante, onde as coisas não parecem estar indo muito bem para a minha acompanhante.

ㅡ A idiota solitária está fazendo o quê na fila da roda gigante? ㅡ ouço a garota de cabelos pretos dizer em tom de desagrado.

A voz dela me dá nojo e espero que Rafaella quebre o nariz dessa infeliz antes que eu o faça.

ㅡ Aqui está ㅡ solto, um pouco mais alto do que pretendia, quando me aproximo do grupo de garotas ㅡ Eu queria encontrar algo que combinasse com o seu vestido, amor ㅡ entrego o algodão doce azul à Rafaella e envolvo sua cintura com meu braço direito, fazendo o bando de garotas ridículas ficarem boquiabertas ㅡ São suas amigas? ㅡpergunto à ela e, vendo que ela não vai me responder, viro-me para as imbecis que nem de longe são tudo isso e digo: ㅡ Sou o namorado da Rafaella. Espero não ter atrapalhado a conversa de vocês.

⚘⚘⚘

Mais doce que esse shipp o algodão doce que eles vão comer.

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