7 - Marcos

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Marcos fazia sua ronda com o doutor Ricardo Donato, que era um homem com mais ou menos quarenta e cinco anos, brusco e sempre com pressa. Ficava apenas dois ou três minutos com cada paciente, verificava suas fichas, dava ordens em tom de voz muito alto e rapidamente para os novos residentes, o que assustava os enfermos.

___ Vejam, AGORA, a hemoglobina.

___ Marquem o procedimento para amanhã bem cedo.

___ Comparem os resultados dos exames de sangue, AGORA.

___ Vejam se esses pontos estão secos e os retirem.

___ Peçam radiografia do tórax PARA JÁ.

As palavras mágicas, por favor/obrigado/com licença, eram desconhecidas do vocabulário dele.

Marcos e os outros residentes faziam de tudo para anotar e realizar com presteza as ordens dadas, procurando evitar um confronto direto com o "chefe", pois sabiam que seriam rebaixados perante quem estivesse por peto.

Aproximaram-se de um paciente que se encontrava dormindo e estava no hospital há mais ou menos quatro dias. O doutor Ricardo apertou o ombro dele, chamando-o com grosseria:

___ Vamos, sente-se para que eu possa examiná-lo.

O homem abriu os olhos, começou a tremes e levantou-se vagarosamente, a face expressando a dor e o esforço necessário com essa ação.

___ Melhorou? O que está sentindo? Por que está tremendo desse jeito? - perguntou doutor Ricardo enquanto auscultava o coração, o pulmão e demais partes do tórax do paciente, que nem conseguia responder, apenas os olhos amedrontados seguiam os movimentos do médico.

"Nunca vou tratar meus pacientes assim", pensou Marcos.

A paciente seguinte era uma garota de 12 anos. O doutor Ricardo examinou sua ficha e lhe disse:

___ Vamos lhe dar uma injeção para que o bicho-papão não venha ti pegar.

Uma enfermeira veio com a seringa já cheia para perto da menina, que ao vê-la com o instrumento na mão, começou a chorar e gritar:

___Não! Você vai me machucar!

___ Não vai doer, meu bem - garantiu a enfermeira.

Apenas essas cinco palavras ativaram um gatilho na cabeça de Marcos, e o transportaram para seu passado sombrio... 

Era a voz do seu padrasto (um dos inúmeros que sua mãe alcoólatra teve) lhe dizendo:

___ Não vai doer, meu bem... vai achar gostoso... abra as pernas... deixe eu ver seu buraquinho... vamos, seu viadinho sacana...

E ele abria suas pernas à força, cuspia em seu ânus, em seu pênis enorme e fedorento e o penetrava à força, machucando-o, preenchendo-o completamente, enquanto tampava sua boca com a mão porca.

Todos os dias, o padrasto o procurava e o forçava a fazer sexo anal, oral, punhetas... e ainda o ameaçava:

___ Tem sorte de ter um homem de verdade como eu para lhe ensinar a foder... adoro comer seu cuzinho apertado e quentinho. E, se contar para a vaca da sua mãe, eu mato você e ela e os enterro no quintal.

Assim, o padrasto se jogava em cima de Marcos, imobilizava-o e não havia choro ou súplica que o fazia parar...

"Não posso deixar que ele me machuque ou machuque minha mãe...", pensava Marcos.

Marcos tinha um irmão quatro anos mais novo. Marcos o amava e o protegia de tudo e de todos. Ele era a única luz em sua vida. 

E,certa manhã, mesmo com medo e apavorado, Marcos resolveu contar para sua mãe o que estava acontecendo:

___ Mamãe, seu marido vai para minha cama todo dia e entra dentro de mim.

A mãe, já bêbada, o olhou surpresa, deu dois bofetões em seu rosto e gritara:

___ Nunca mais invente mentiras assim, seu viadinho de merda. Você deveria ter nascido morto.

Marcos nunca mais tocara nesse assunto. Só continuou em casa por causa do seu irmão. Porém, quando percebeu um cheiro horrível e um líquido amarelado saindo de seu ânus, ele fugira e fora para a casa de uma tia distante em outra cidade.

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No dia em que Marcos fugiu de sua casa, sua vida mudou completamente!

Sua tia o recebeu sem perguntar nada! Mas ouviu calmamente toda a história, olhando-o com olhos de amor, compaixão e ternura. Levou-o ao hospital, onde foi constatado o abuso sofrido e o fato de Marcos estar com gonorreia. Ele foi tratado, curado e sua vida se transformou.

Sua tia sempre lhe dizia:

___ Não precisa me falar detalhes da sua vida, meu querido! Mas, a partir do momento em que você veio para cá você não precisará fugir de mais nada nem de ninguém! Pense em apenas duas coisas: não é fácil ser gay, não é fácil ser negro. Você pode continuar a fugir e a se esconder, a culpar o mundo por todos os seus problemas, ou poderá ficar de pé sozinho e decidir ser alguém importante.

___ Como poderei fazer isso? - perguntara Marcos fascinado com as palavras da tia.

___ Tendo consciência de que VOCÊ É IMPORTANTE! Primeiro, imagine o que e quem você quer ser. Depois, trabalhe para que isso aconteça de fato!

E assim, iniciou uma faze de encantamento para Marcos!

Ele saia com sua tia para parques, cinemas, museus, teatros, restaurantes... ela lhe comprou roupas novas, ensinou-lhe boas maneiras e higiene pessoal. Conversavam muito, conversavam sobre tudo. Ela nunca lhe questionou sobre sua sexualidade. Ela o aceitava, respeitava e, principalmente, o amava. Sua mãe? Nunca mais soube dela. Apenas pensava no irmão menor e, nesses momentos, um aperto no coração lhe tirava o ar.

Tia Maria matriculou Marcos em uma excelente escola pública, além de aulas de natação e inglês e pensava "Esse menino nunca foi de fato uma criança..."

Fizera amizades na escola. Lá, teve seu primeiro envolvimento amoroso com um menino lindo e bondoso. Primeiro beijo. Mas apenas isso. E nunca ninguém desconfiou de nada.

Marcos amava a tia e sentia o mais profundo amor por ela.

Antes, ele nunca se interessara muito por escola, nem por leitura, nem pelo conhecimento... mas tia Maria mudara tudo, pois possuía uma vasta biblioteca em um dos quartos da sua casa e sua alegria em relação à leitura era maravilhosa:

___ Querido, existem nos livros mundos e personagens contagiantes! Leia e saberá de onde vem, para onde vai... você viajará para lugares lindos... viverá a vida de personagens contagiantes... com a leitura, você poderá se tornar qualquer pessoa que quiser ser... apenas comece!

Assim, incentivado pela tia, Marcos se tornara o melhor aluno da sua classe. Era um leitor ávido e, um dia, na casa da tia, folheando os livros dela, encontrou, por acaso, um exemplar de um livro que narrava a história de uma jovem médica que lutara arduamente para estudar e se tornar uma respeitada cirurgiã. A história envolvente e cheia de percalços despertou em Marcos um desejo imenso, brotado dentro de seu íntimo...

___ Tia Maria, vou ser médico... e muito famoso!


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