Maurício havia chegado há pouco em casa, estava esgotado pelo dia estafante no hospital. Não parara um minuto sequer e comera de pé, andando pelos corredores. Deitou na cama com roupa e tudo e dormiu sem perceber. Foi despertado pelo toque insistente do telefone, sem abrir os olhos atendeu.
___ Alô.
___ Doutor Maurício? Desculpe incomodá-lo, mas um dos seus pacientes insiste em lhe falar pessoalmente.
___ Estou de folga... outro médico não poderia...
___ Ele não aceita conversar com outro doutor, pede o senhor insistentemente.
___ Quem é esse paciente?
___ É o senhor Pietro Shwatz.
Maurício acordou no mesmo instante. Era seu paciente favorito. Desenvolvera por ele um sentimento muito além de paciente-doutor, via-o como seu pai. De início, ele não aceitara Maurício como seu médico, pois achava-o novo demais e incompetente, mas após o médico abri-lo para operá-lo e constatar que o câncer melanômico havia tomado praticamente todos os seus órgãos, um sentimento de confiança e amizade verdadeira surgira entre ambos. Maurício não mentiu, nem omitiu nada ao senhor quando este voltou da anestesia. E, a pior de tudo, foi perceber que a mulher e os irmãos dela se preocupavam não com a saúde de Pietro, mas com a herança que ele deixaria para eles. Assim, com o passar dos dias, Maurício e Pietro conversavam muito, o senhor relatava todos os momentos marcantes de sua vida ao médico, que ouvira, ria e se emocionava com as histórias contadas. Assim, Maurício foi ao hospital esperando pelo pior. Ao chegar lá, dirigiu-se diretamente ao apartamento onde o paciente estava internado e o encontrou na cama, acordado, a dor o consumindo por inteiro, tubos saindo das narinas e braços.
___ Obrigado por ter vindo.
Sua voz estava fraca, baixa, rouca. Maurício aproximou-se da cama e segurou a mão do senhor sorrindo.
___ Preciso conversar com você, é sério. – disse Pietro.
___ A esta hora? Achei que era algo muito mais grave que uma conversa.
___ Mas é... não poderia falar durante o dia... muitas pessoas entram e saem daqui.
Maurício apenas assentiu.
___ Quero ir embora.
___ Pietro... você sabe que não posso ti dar alta!
___ Não... não... não quero ir pra casa. Quero partir.
___ Como assim? – perguntou, Maurício, surpreso.
___ Já entendeu o que eu desejo, doutor... os medicamentos não fazem mais efeito em mim... não suporto a dor... eu quero partir.
Maurício chegou mais perto do senhor, apertando sua mão com firmeza.
___ Não posso fazer isso... – os olhos marejados.
___ Pode... estou cansado, muito cansado... quero ir pra onde qualquer lugar, menos continuar assim... não aguento mais...
___ Senhor Pietro... não posso! – e as lágrimas de Maurício caíam sobre a cama.
___ Quanto tempo ainda me resta? Dias, semanas talvez? Nós já conversamos sobre isso e também sobre eu não ser resistente à dor... estou aqui, como um animal preso, com todos esses canos dentro de mim... sinto meu corpo sendo corroído aos poucos... isso não é viver... pelo amor de Deus... me ajude... por favor!
O corpo débil foi sacudido por um espasmo de dor e, quando conseguiu falar novamente, a voz soou ainda mais baixa:
___ Ajude-me... por favor...
Maurício ficou olhando-o com ternura e chorando... ele sabia o que tinha que fazer... e também sabia todas as consequências que o aguardavam se fizesse...
___ Doutor... é a minha vida... deixe-me fazer como eu quero...
O médico olhou para Pietro sem responder nada. Ainda segurava a mão do senhor... e, bem baixinho e próximo ao rosto do homem, Maurício disse:
___ Feche os olhos... logo a dor vai passar e você vai dormir tranquilamente...
O senhor Pietro fez como lhe foi ordenado, suspirando pesadamente e com dificuldade... um leve sorriso nos lábios murchos e ressequidos.
Maurício continuou ali, segurando a mão dele, olhando-o e pensando no que faria... lentamente, levantou-se, foi até o armário onde era guardado um vidro de insulina a ser usado em emergências, pegou o frasco, abriu-o, encheu uma seringa com a insulina, voltou para o lado do senhor Pietro, inclinou-se para a frente, injetou a insulina no tubo do soro preso ao braço do senhor e disse chorando:
___ Durma bem... com os anjos!
Maurício voltou ao apartamento e não conseguiu dormir mais... seus pensamentos eram um emaranhado de sentimentos contraditórios...
Às cinco e trinta da manhã, já no hospital, recebeu a notícia de que o senhor Pietro Shwatz havia morrido de parada cardíaca durante a madrugada.
O médico da equipe permanente na chefia naquela manhã era o doutor Alexandre Freitas.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Médicos
RomanceO que três rapazes de diferentes cidades do país poderiam ter um comum? Apenas o mesmo sonho de serem médicos e utilizarem seus conhecimentos para ajudar os outros. Porém, nem sempre os desejos são tão fáceis de se tornarem realidade, pois a mentira...