Capítulo XXIII - Epílogo

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O futuro rei de Ravena ajeitou a gravata pela milionésima vez. Olhava-se no espelho, em busca de algo fora do lugar para corrigir. Um fio de cabelo, um colarinho torto, uma abotoadura frouxa..., mas não havia nada. Apenas o nervosismo.

Dentro de poucas horas, ele teria a Coroa sobre sua cabeça e uma responsabilidade gigantesca sobre seus ombros. Não devia ter pensando nisso. Seu estômago se agitou ensaiando uma ânsia de vômito.

Estava sozinho em seus aposentos. Os criados já não tinham mais o que fazer, então ele os dispensou. Não ia ficar gastando o tempo dos outros e precisava de uns minutos sozinho para refletir.

Andou pelo quarto, olhou pela janela, abriu um livro. Tentava ao máximo se distrair, desviar o foco, mas sua mente insistia em lembrar do seu compromisso. Bufou de frustração e, sem pensar, voltou ao espelho para conferir se sua camisa não estava amassada.

Uma estranha brisa invadiu o quarto. As cortinas elevaram-se como uma presença angelical. Era um dia de sol, daqueles que dão vontade de deitar-se à sombra de uma árvore e contemplar a natureza perfeita.

O príncipe caminhou até as janelas e apoiou-se no parapeito. Lá embaixo, as pessoas caminhavam em procissão, na direção do castelo. Seus súditos já se encaminhavam para o evento que os mostraria seu novo rei. Uma menininha olhou para o céu e, correndo os olhos displicentemente, notou-o. seu sorriso abriu-se e ela levantou seu bracinho em um aceno enérgico. Pareceu extremamente satisfeita em ter seu cumprimento retribuído.

Rindo, o rapaz virou para dentro do cômodo e teve um leve sobressalto com a visitante inesperada. Segundos depois do susto, ele sorriu.

— Eu imaginei que você apareceria hoje — comentou o rapaz.

A garota sentada na cama ergueu a sobrancelha.

— Tinha a intenção de ser imprevisível.

— Acho que se você aparecesse no meio da cerimônia iria conseguir ser "imprevisível".

— Hoje é o seu dia de brilhar, não quero desviar o foco, mas seria um acontecimento e tanto. Quantas coroações tem a aparição da quimera morta totalmente consciente?

— Acho que não muitas — murmurou o príncipe.

— Exato. Pelo menos ia aliviar Jeras da culpa de perder meu corpo e mentir para a imprensa que eu fui velada em Storm's Eye.

— Você devia ter aparecido para ele. Ia devolver noites decentes de sono para o homem.

— Não gosto dele, então considero uma espécie de vingança.

— Ainda bem que você supostamente morreu e não vai herdar a coroa. Coitados dos súditos.

Aquilo fez os dois mergulharem um silêncio tenso. O príncipe queria perguntar tantas coisas para ela, mas havia certa hesitação. Tinha medo das respostas.

— Pergunte, Arthan — disse a garota, de repente, observando-o com atenção.

Ele umedeceu os lábios antes de falar.

— Porque... porque nunca me contou... sobre nosso laço?

— Não era minha responsabilidade — respondeu ela laconicamente.

Arthan sentiu a frustração dominá-lo.

— Considerando que nossos pais não eram exatamente um livro aberto, você poderia ter feito isso. Era sua responsabilidade também.

— Não acho. Eu só fui saber que os dois se reproduziram novamente quando eu saí da prisão. Nunca recebi um cartão contando as grandes novidades: "Parabéns, Atalya, você foi promovida a irmã mais velha! ".

— Poderia ter contado quando nos conhecemos!

— Você teria acreditado? — Ela perguntou já sabendo a resposta. — Teria? Ambos sabemos que não. E, de qualquer forma, eu não podia dizer que era da família, já que eu fui expulsa dela por causa do feitiço de Markus.

Arthan abriu a boca para tentar discordar dela, mas sabia que a garota estava certa. Ele teria acreditado nos pais, afinal.

— Porque não se refere a eles como pais? — Perguntou ele.

— Pai e mãe são pronomes de tratamento que denotam sentimento. Markus e Mirasandra são meus progenitores. O mais próximo de um pai que eu tenho é Cassius.

— Por mais que você não queira, é uma Ravier. Eles são sua família.

— Errado — retrucou Atalya. — Você mesmo disse que família são pessoas que nos amam e se importam conosco. Não lembro de um único segundo que qualquer um dos dois tenha demonstrado amor para comigo.

Arthan ficou em silêncio, observando a irmã — a palavra ainda era estranha para ele. Por mais que ele também tivesse convivido com uma certa frieza e a teimosia dos pais em "curá-lo", com certeza não sofreu o que ela sofreu. Pela forma como Atalya crispou os lábios e olhou para o vazio, provavelmente revivendo alguma lembrança amarga, ele sabia que tinha sido mais sortudo. A quimera era uma garota que não conheceu o amor até parar em Storm's Eye, já adulta e rival do próprio pai.

— Queria poder consertar o que aconteceu com você — as palavras saíram da boca do príncipe antes que ele pudesse conter.

— Não pode — havia uma estranha seriedade na voz dela. — E não ia querer mesmo que existisse a possibilidade. Tudo o que eu fiz, me transformou em uma pessoa muito diferente, e muito melhor do que a princesa Atalya Ravier. Eu gosto bem mais de ser a quimera Atalya.

Arthan sorriu timidamente e ela retribuiu.

— Nós... somos uma família agora? — Perguntou ele, hesitante.

Ela avaliou brevemente.

— Ter um irmão está sendo tão diferente para mim quanto está sendo para você — disse ela. — Vai demorar um pouco até eu me acostumar com isso, mas pode contar comigo, irmãozinho — ela fez uma careta divertida ao pronunciar a palavra.

— Vai voltar aqui mais vezes? — Arthan não conseguiu controlar a ansiedade.

— Sim, mas não com muita frequência. Agora sou uma garota livre e vou gozar a minha liberdade.

— O que vai fazer agora?

— Talvez visitar Allyria, acho que seria legal tentar também esse negócio de amiga — Atalya colocou o dedo no queixo de forma pensativa. — Acho que vou morar na Zona Neutra na divisa com Wavecarver, vi uma casa na beira da praia que eu adoraria morar. Mando o endereço quando me fixar.

— Cassius sabe que está viva?

— Foi a primeira pessoa que eu vi depois que fugi. Aliás, Storm's Eye inteira sabe. Por isso que ninguém desmentiu a história de Jeras.

Arthan riu. Lembrou do dia que Jeras entrou desesperado no escritório antes pertencente a Markus, esbaforido, dizendo que o corpo da quimera havia sumido. O príncipe também havia entrado em desespero, mas recebeu uma carta logo depois, da própria Atalya, contando que estava viva e bem, além de pedir para que ele não contasse a ninguém.

Três batidas na porta fizeram-no ter um sobressalto.

— Vossa Alteza, temos que ir para o castelo — era Ezura.

Atalya já estava de pé e encostou o indicador nos lábios.

— Já vou, dê-me um minuto! — Exclamou o príncipe.

— Hora de ir — murmurou Atalya. — Seja um bom rei. Proteja os híbridos. Mandarei uma carta ou aparecerei aqui quando puder.

Arthan assentiu, o nervosismo tomando conta novamente. Sem pensar muito, aproximou-se da irmã e abraçou-a. Ficou surpreso quando ela retribuiu. Ao se afastarem, ela estava com as sobrancelhas unidas, como se experimentasse algo diferente, mas ainda não tinha decidido se aquilo era bom ou ruim.

Quando ele abriu a porta do seu quarto e olhou para trás, estava sozinho.

As Crônicas de Ravena - A Ascensão da QuimeraOnde histórias criam vida. Descubra agora