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Sábado.

Inquieto.

Como de costume Bert não estava quando acordei, assim como não estava quando fui dormir. Já era parte da rotina estar sempre sozinho. A única coisa que me fazia ter certeza que ele esteve ali era uma mesa de café da manhã com algumas fatias de bolo da padaria que ele sabe que eu gosto e a garrafa térmica grande cheia de chocolate quente. Tão doce como nossa relação fora um dia, mas por algum motivo tinha deixado de ser.

A pergunta feita pelo psicólogo rondava minha mente enquanto colocava o chocolate em uma caneca e pegava um pedaço do bolo. Eu e Bert quase não tínhamos mais algum tipo de interação mas ficar com ele era quase... Cômodo? Como trabalhar em uma empresa que não valorizava nada alem dos prazos. Era difícil continuar a viver assim mas como começar do zero seria mais fácil?

Decidi focar apenas no meu café da manhã enquanto pensava. Meus dedos traçavam uma especie de figura humana na mesa. Talvez desenhar um pouco me ajudaria a pensar, sempre ajudava. Mesmo que eu não desenhasse nada realmente bom a longos meses, tive uma sensação de que hoje seria mais produtivo. Levantei da mesa levando junto a garrafa térmica e a caneca até o pequeno quarto que eu chamava de estúdio.

Era animador estar ali, mesmo que o quarto já estivesse com um forte cheiro de poeira. Ainda tinham meus quadros pendurados nas paredes, tubos de tinta por todo o lado, aquarelas sujas, cadernos com diversos esboços e cores. Muitas cores. Cores que senti que acabaram se perdendo ao passar dos anos mas estavam bem ali naquele quartinho.

Abri a janela e o vento soprou forte no meu rosto. Estava frio mas o momento fez tudo parecer aconchegante. Depois de tirar um pouco da poeira, liguei o rádio e peguei um caderno que ainda tinha folhas em branco. Os traços vazios rapidamente tomaram forma e quando me dei conta havia um rosto ali, aquele rosto que me deu esperanças quando nada mais fazia sentido. Eu desenhei o rosto de minha avó. E por mais triste que fosse não poder mais vê-la como eu fazia todos os sábados, seu rosto trouxe à tona todos os motivos que me fizeram chegar até aqui sem desistir.

Continuei desenhando coisas aleatórias que surgiam na minha mente com um grande sorriso no rosto. Nem percebi quando o sol se pôs e eu ainda nem mesmo tinha tido uma refeição decente. Andei em direção a cozinha com a intenção de fazer uma macarronada simples mas me lembrei que não tinha macarrão ou tomates. Se eu não cozinhasse, Bert também não cozinharia e isso acabou se tornando um mar de comidas prontas que, se fosse em um momento diferente eu apenas comeria como se fosse um prato de um restaurante famoso, mas nesse momento eu não queria nem chegar perto.

Pensei em pedir comida ou talvez uma pizza mas por fim decidi apenas ir ao mercadinho 24 horas da esquina comprar alguma coisa. Não era normal eu sair de casa se não fosse uma emergencia então até o porteiro do prédio estranhou me ver saindo do elevador de moletom e crocs mas apenas acenei para ele e continuei andando.

Decidi que faria um macarrão ao pesto então além da massa só precisei pegar algumas nozes, um pouco de manjericão e um pedaço de pecorino como na receita da vovó. Sorria durante o caminho até o caixa lembrando de quando eu era criança. No verão ela fazia de tudo para me deixar preparar aquela receita sozinho mas eu sempre esquecia alguma coisa e ela tinha acabava me ajudando.

Era a primeira noite em que eu pensava nela e não chorava. Era a primeira noite em que eu lembrava dela como a avó maravilhosa que ela sempre foi. Era a primeira noite em que a imagem dela vinha a minha mente sem ser em uma cama repleta de aparelhos ou um caixão de madeira escuro.

E eu estava feliz em lembrar dela. Realmente feliz.

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Domingo.

Nada.

Bert chegou por volta de uma da tarde. Nem mesmo tinha ligado para dizer que não voltaria pra casa. De novo. E de certa forma eu estava muito agradecido por ele não estragar minha noite. Sua ressaca era tão evidente que nem precisou chegar perto pra eu notar e o cheiro de álcool impregnado em sua roupa era quase insuportável.

Ele foi direto para o banho onde eu sei que ficaria por pelo menos 30 minutos e era muito provável que o álcool em seu organismo não o deixaria segurar os gemidos com o nome de outro homem enquanto ele se tocava. E eu, como um bom marido que eu sou, faria um café forte e levaria aspirinas para ele tomar na cama. E ele dormiria bem tranquilo enquanto eu chorava.

Não era tão difícil saber que ele estava me traindo com outro homem quando eu até mesmo sabia o nome dele. Mas toda aquela história de terapia de casal não iria dar em nada desse jeito, certo? Era a primeira semana e... Ele continuava me traindo. O que me prendia nessa vida? O que não me deixava mudar de novo? Aquele psicologo tinha me feito pensar tanto nisso e ainda não tinha uma resposta formada mas queria poder dar uma resposta a ele. Talvez fosse um bom momento.

De: Gerard

Para: Frank (psicólogo)

"Oi, eu pensei muito na pergunta que você me fez e talvez essa não seja a resposta certa ainda mas eu acho que ter Bert se tornou algo cômodo e mesmo que ele chegue em casa cheirando a álcool e dizendo o nome de outro homem no banho enquanto... você sabe, ele é tudo que eu tenho. Nenhuma família, nenhum amigo. Só eu e Bert. Pode não ser bom mas pelo menos não é nada. O que mais um cara de 30 anos sem emprego gay e sem família poderia fazer se não aceitar que o marido traia ele se é esse marido que paga além das contas e comida, a terapia desse cara? Irônico né? Ter que me prender em um dos motivos pra minha terapia exatamente por causa dessa merda de terapia"

Não demorou muito pra eu limpar a ultima lagrima e ir até a cozinha comer uma ou duas garfadas do macarrão da noite passada e tomar alguns remédios que com sorte me fariam dormir até a consulta no próximo dia.

What's Your Poison?Onde histórias criam vida. Descubra agora