Capítulo 1

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Se esta vida é um ato
Por que colocamos todas essas
armadilhas? As colocamos bem
no nosso caminho
Quando só queremos ser livres
Não vou perder meus dias
Criando todos os jeitos
De me preocupar com todas as coisas
Que não irão acontecer comigo
(Jason Mraz | Living in the Moment)

Se esta vida é um atoPor que colocamos todas essasarmadilhas? As colocamos bemno nosso caminhoQuando só queremos ser livresNão vou perder meus diasCriando todos os jeitosDe me preocupar com todas as coisasQue não irão acontecer comigo(Jason Mraz |...

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— Qual é, não dá pau de novo! — Chutei a máquina de lavar roupas que havia enguiçado pela segunda vez naquela semana.

Meu orçamento apertado não me dava o luxo de comprar um eletrodoméstico novo, então xinguei aquela máquina estúpida em todos os idiomas que consegui lembrar e saí dali pisando firme. Teríamos essa conversa novamente quando eu voltasse no final do dia, e seria definitiva. Afinal, ou essa relação dava certo, ou eu teria que lavar minhas poucas roupas apresentáveis à mão.

As coisas não estavam de todo ruins. Meu cabelo havia acordado de bom humor, eu ainda tinha um emprego e as louças estavam limpas. O que mais uma mulher moderna poderia querer?

Ah, claro! Cem mil na conta, um namorado lindíssimo, zero frizz no cabelo e uma porção de coisas caras que meu salário nunca poderia pagar.

Eu tinha um namorado bonito, isso era indiscutível. Com cabelos ondulados em um tom indescritível de marrom, pele bronzeada, olhos escuros, peitoral largo e boca carnuda, ele tinha aquele queixo bem desenhado que o fazia parecer o pecado em pessoa. Eu o vi pela primeira vez em uma revista sobre a mesa da Babi e praticamente desmaiei. Ele era lindo como um deus.

Se eu acreditasse em sorte, diria que ela me deu uma ajudinha. Duas semanas depois, ele apareceu no escritório, de jeans rasgados e camisa frouxa — a verdade é que ninguém queria vê-lo vestido.

E então aconteceu: nossos olhares se cruzaram. Ele sorriu pra mim — ou de mim — quando me viu derramar meio copo de café na minha melhor amiga, que ficou furiosa. O deus grego caminhou a passos largos e parou na nossa frente, ouvindo Babi me xingar enquanto esfregava um pedaço de papel toalha na blusa.

— Você é a Daiana? — ele perguntou. — Deveriam ter me dito pra procurar a moça mais bonita deste andar.

Acho que nem preciso dizer que mal pisquei. Eu posso ser quem você quiser, quase disse.

— Na verdade, a Daiana sou eu — minha amiga, agora muito irritada, disse entre os dentes. — E eu prefiro o primeiro nome, que é Bárbara, se você não se incomoda.

Juro que quase bati nela. Como ela podia ser tão grossa com o amor da minha vida?

— E você, quem é? — Ele cutucou meu ombro.

— Sou a Lexie.

— É, ela é a Lexie — minha amiga resmungou entre os dentes.

— É um prazer — piscou pra mim, daquele jeito incrivelmente sexy.

Imagina, o prazer é todo meu.

— O que você queria comigo mesmo? — Babi praticamente rosnou, a mancha agora estava enorme.

— Me disseram que é você quem diz o que eu devo fazer.

Por favor, que seja um ensaio seminu.

Tá legal, não trabalhávamos com esse tipo de foto. No entanto, minha bela amiga sortuda vez ou outra fotografava homens maravilhosos em cuecas igualmente maravilhosas, diga-se de passagem, em alguns trabalhos por aí.

Babi assentiu pra ele, ainda com a cara amarrada. Alguns segundos depois, ele a seguiu corredor adentro. Antes de sumir por uma das portas, eu o vi piscar pra mim — era praticamente um pedido de namoro, e eu sabia disso.

Chequei o e-mail pela segunda vez naquela manhã. Eu sabia que havia sido uma péssima ideia comprar aquela bota, e que a fatura do cartão viria altíssima naquele mês.

Lecter e Django pareciam endiabrados. Os dois se engalfinharam no canto da sala por alguma coisa idiota e agora viviam ronronando um para o outro. Também foi uma péssima ideia trazer mais um gato para casa naquele momento; os dois acabariam passando fome junto comigo.

Puta que...

— AH, INFERNO! É brincadeira, não é?!

Fechei o registro do gás antes de girar o botão do fogão. O cheiro de queimado encheu a casa em tempo recorde e eu perdi toda a minha janta.

Bati a testa na parede da pia e xinguei todos os demônios.

— Minha nossa senhora! Em que você pôs fogo dessa vez? — A vizinha entrou de porta a dentro, mexeriqueira como sempre.

— Ô dona Josefa, foi só o arroz que deu uma queimadinha. Eu tava no banho — menti, porque dizer que estava lutando com a máquina de lavar me parecia mais vergonhoso.

— Pelo amor de Deus, hein, minha filha?! Quase todo dia eu sinto cheiro de queimado lá de casa. Não dá nem pra arrumar um marido.

— Ele cozinharia pra mim — mostrei meu sorriso mais complacente.

— Onde já se viu uma coisa dessas? — Ela pareceu ofendida. — Marido não tem que ficar na cozinha.

— O meu ficaria, se não quisesse comer carvão todo dia.

— Acho que dá pra salvar — ela foi levantando a tampa da panela.

— Não vai dar não, eu já tô atrasada.

— Acredita que a filha da Cleide tá se envolvendo com o dono do boteco da esquina? Me recuso a chamar aquilo de namoro.

— As pessoas são livres pra namorarem quem elas quiserem, a senhora sabia?

— Na minha época não tinha essa pouca vergonha, ficar se esfregando na frente de todo mundo...

Eu quase revirei os olhos.

— Então que bom que a época é outra, não é mesmo?! As pessoas são mais felizes! Olha, se a senhora me der licença, eu preciso mesmo sair — gesticulei em direção à porta.

A mulher torceu o nariz e arrumou o lenço colorido que tinha amarrado nos cabelos.

— Ouvi dizer que se cortar a cebola e colocar no arroz, sai o cheiro de queimado.

— Claro, eu vou fazer isso — praticamente me pendurei na porta, tentando não arrastá-la pelos cabelos até chegar no fim da calçada.

Antes de sair, ela deu uma boa olhada no cômodo único da casa e torceu aquele nariz gigantesco que carregava.

— Santa Maria! Isso aqui está uma zona.

— Se a senhora quiser, deixo a chave qualquer dia desses — sorri entre dentes — sei que adoraria dar uma mãozinha com a faxina.

A mulher saiu dali como o diabo foge da cruz, resmungando alguma coisa que não me dei ao trabalho de ouvir.

Fechei a porta respirando fundo, joguei a panela de arroz queimado na pia e marchei em direção ao banheiro. Estiquei os lábios enquanto deslizava meu batom de sempre sobre eles, o de cacau. Sobre o ombro, pendurei a bolsa de couro novíssima que havia ganhado no Natal passado e estava pronta para sair.

No bolso de trás da calça jeans desbotada, mas limpa, senti o celular vibrar. Aquela era a terceira mensagem de Babi, nessa ordem:

"Bom dia, flor do dia. Ainda vamos juntas?"

"Me responde, sua maldita!"

"SE NÃO CHEGAR EM CINCO MINUTOS, JURO QUE VOU TE MATAR."

Um dia como qualquer outro, obviamente.

BEM ME QUEROnde histórias criam vida. Descubra agora