Algumas semanas de trabalho duro não foram o suficiente para matar Peter Gavin, tampouco para fazê-lo desistir da delegacia da Baía dos Lírios. Sua sanidade deveria estar despedaçada, mas o jovem levou ao pé da letra as palavras de seu instrutor da época da academia que dizia que um bom policial deve ter a mente preparada para tudo. Sua determinação e o auxílio de seus colegas foram fundamentais para esta conquista e logo sua mente já não conseguia ver os inumanos como diferentes de sua raça. Claro, eles tinham aparências, necessidades e hábitos incomuns, mas no fundo apenas queriam viver em paz naquela cidade e era seu dever garantir isso.
Depois de atender a um chamado de uma briga entre orcs em uma festa familiar, Peter e Beatrice foram até a sala de café na delegacia em busca de um alívio momentâneo de sua rotina frenética e encontraram Jeff admirando uma folha de papel A4. Movidos pela curiosidade, ambos esticaram seus pescoços, identificando uma pintura de uma mulher de pele rosada, cabelos alaranjados e três olhos. O policial decidiu ignorar, mas a boneca não quis perder uma chance de implicar com o colega.
- Mas olha só Jeff! Admirando uma namoradinha?
O policial se assustou, pois não havia notado a presença dos colegas, mas logo ficou empolgado com a pergunta, contrariando as expectativas da boneca.
- Quem me dera ter essa honra! Essa é Nyaktar, a grande heroína da minha raça. Nossa sociedade entrou em colapso e ela ficou para garantir que os sobreviventes pudessem atravessar o portal.
- Mas olha só, então isso é uma relíquia? - perguntou Beatrice.
- Sim! Consegui depois de economizar um pouco com um mudrost amigo meu.
- Tudo bem, cada louco com sua mania.
Beatrice conseguiu irritar seu colega, mas a cena pacata foi logo interrompida pela chegada do delegado, trazendo notícias ruins. Alguns corpos foram encontrados em uma condição extremamente bizarra nos arredores da cidade. Peter e sua parceira desistiram do descanso e partiram para a sala da necromante para averiguar a situação. Eli, a legista chefe observava os cadáveres sobre as mesas metálicas, aparentemente confusa. O primeiro corpo se decompunha rapidamente, sua carne se liquefazia e seus ossos ficavam à mostra e logo tudo se regenerava, alternando entre estes dois estados a cada dez segundos. Ao lado, havia apenas duas pernas humanas em ótimo estado e uma grande poça negra e viscosa onde deveria estar o resto de seus membros. Na terceira cama metálica, encontrava-se um esqueleto embebido no mesmo líquido negro e viscoso que seu colega ao lado, porém sua metade inferior se agitava em agonia, gerando uma cena muito perturbadora. Sem entender o que estava diante de seus olhos, Peter resolveu consultar a especialista no local:
- Eli, o que diabos é isso?
- Ao meu ver, são três tentativas do mesmo experimento e só uma deu certo, ou quase. - disse a legista. - Eu entendo muito bem de corpos e mortos-vivos, mas essas perninhas agitadas se tratam de um vivo-morto.
- E qual a diferença? - perguntou a boneca.
- Mortos-vivos ou zumbis, vulgarmente falando, se tratam de seres que morreram e foram reanimados. Este corpo está preso em um estado entre a vida e a morte, com cada metade de seu ser em um dos dois polos ao mesmo tempo. Ele está em uma agonia terrível e eu sou incapaz reverter isso sem saber o que foi feito, de fato.
O trabalho da dupla era óbvio: rastrear o responsável pelo experimento e impedir que mais pessoas acabassem daquela forma. Infelizmente, a Baía dos Lírios não atraía apenas pessoas que buscavam um lugar para chamar de lar. Muitas pessoas de sanidade questionável viam a cidade como um parque de diversões onde poderiam extravasar seus impulsos bizarros. Determinados a deter um possível membro desta classe de maníacos, a delegacia iniciou uma grande operação em busca de pistas por todos os cantos da cidade enquanto a necromante tentava contactar as almas das três vítimas.
Uma semana se passou e Eli finalmente obteve sucesso quando o proprietário das pernas agitadas decidiu morrer de vez. A garota usou seus conhecimentos e sua magia para reconstruir o corpo da forma mais rápida que pôde, conseguindo interrogá-lo e extrair dele a localização do cientista responsável por toda aquela comoção. A informação levou os policiais até um galpão abandonado próximo às docas da cidade. O local era utilizado para armazenar equipamentos de uma velha companhia de transporte marítimo que foi à falência cinco anos antes da Crise do portal.
Peter e Beatrice foram os primeiros a entrar no local junto com uma dupla de elementares, sendo um com o corpo feito inteiramente de terra e o outro de água. Os quatro policiais se esgueiraram pela entrada lateral do galpão em silêncio, encontrando um grande laboratório moderno cheio de equipamentos metálicos em perfeito estado e em funcionamento, em contraste com a desgastada estrutura do galpão, que era consumida lentamente pela ferrugem e pela maresia. Próximo às paredes havia cinco jaulas metálicas do tamanho de um banheiro químico e duas do tamanho de uma mesa de centro. Havia um ogro adormecido em uma das grandes e um duende e um gato nas pequenas, as outras estavam vazias. No centro de tudo havia uma mesa metálica com um humano amarrado sobre ela com eletrodos espalhados por seu corpo. Ao seu lado estava um homem alto com cabelos longos e negros, pele parda, olhos negros, com uma máscara cirúrgica no rosto e um jaleco branco. Em sua mão direita havia uma seringa com um líquido avermelhado e sua mão esquerda estava sobre a alavanca de um dispositivo eletrônico de onde saíam os eletrodos.
Não se sabia qual era o conteúdo da seringa, mas Peter deduziu que seria a causa do estado de vida-morte. Sem tempo para conversa, o policial resolveu impedir o experimento imediatamente. Ele sacou sua pistola, mirou e atirou contra a seringa, espalhando seu conteúdo pelo chão, alertando o criminoso da presença policial. O cientista ficou furioso e sacou um bisturi de seu bolso, o encostando na garganta de sua vítima, que parecia estar sedada, usando-a como refém.
- Sumam daqui! - berrou o louco. - Estão atrapalhando uma revolução na ciência! Imaginem um exército com soldados que não podem ser mortos! Qualquer governo pagaria milhões por essa ideia!
- Pare de ser maluco, solte o bisturi e se entregue pacificamente, Sr. cientista. - disse Beatrice enquanto se aproximava aos poucos do homem.
- Eu sou Esteban Conrado! Guardem esse nome em suas mentes ignorantes, pois ele estará em todos os livros de história!
O lunático continuou enaltecendo seu ego e enfatizando a importância que teria em um futuro próximo, que suas invenções mudariam o mundo dentre outras besteiras. Estava tão ocupado com sua grandiosidade que não notou a aproximação do elemental da água, se aproximando em forma líquida pelas suas costas. O policial se materializou e conseguiu render o suspeito, livrando sua vítima de um destino terrível. Esteban começou a balbuciar xingamentos e a amaldiçoar a polícia enquanto era algemado e retirado do local.
Libertaram todos de suas jaulas e Eli os examinou para ter certeza de que estavam todos bem. Apenas o gato tinha passado pelo experimento e sua metade inferior era um esqueleto coberto por uma gosma negra e viscosa, mantendo sua forma felina. O animal não tinha dono, tampouco poderia ser colocado para adoção. Eli queria estudar o espécime para compreender melhor esta nova condição da alma, mas Peter tinha planos melhores para o bichano. Lhe deu o nome de Schrodinger em homenagem ao físico austríaco e levou o animal consigo para casa.
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Baía dos Lírios
FantasíaUm portal para outras dimensões se abre em uma cidadezinha no interior dos Estados Unidos. Por ele, seres multidimensionais adentrar o pequeno planetinha azul a fim de viver uma vida "normal". Depois de anos de guerras, a paz entre os humanos e os i...