A falsa heroína

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Sentada sobre um cristal arroxeado que brotava do chão de uma colina de vegetação avermelhada estava uma mudrost de cabelos longos e alaranjados, pele rosada, com um olho azul e o outro verde, estando o terceiro fechado. Sozinha, ela observa as ruínas de sua civilização com um sorriso sutil em seu rosto. Os grandes edifícios de cristal turquesa que um dia foram monumentos do avanço de sua sociedade, se encontravam em pedaços, nenhum com a altura maior do que dez metros. Satisfeita com o cenário à sua frente e tendo a certeza de que era a única de sua raça no planeta, se levantou e deu as costas para a destruição pela qual era responsável, caminhando lentamente em direção a uma esfera de energia azulada.

Nyaktar nasceu com a maior capacidade psíquica da história de sua raça, sendo capaz de manipular mentes com o simples toque aos cinco anos de idade. Os mudrosts usam seus terceiros olhos como amplificadores de seus poderes mentais, mantendo-o aberto a todo momento para nunca perder a intensidade de suas vibrações mentais. Neste contexto todos sempre souberam que Nyaktar era especial, pois ela só o abria em raras ocasiões e, ainda assim, superava seus mentores com facilidade. Tais habilidades garantiram-lhe o título de conselheira máxima mais jovem da história.

A raça de telepatas sempre tentava agir racionalmente, sem dar valor aos sentimentos e formando uniões por interesses políticos e apenas para a procriação. Nyaktar era diferente deles, sempre ouviu os seus sentimentos e prezava sua diversão acima de tudo. Infelizmente para o planeta, ela se divertia com a desgraça alheia. Aproveitando suas grandes capacidades mentais, ela manipulava as pessoas ao seu redor para causar intrigas e observar os resultados. Graças à sua natureza racional, os mudrosts não faziam guerra e tampouco possuíam exércitos ou sistemas de defesa. Eles eram arrogantes a ponto de acreditar que ninguém do universo os atacaria, já que não incomodavam ninguém com sua presença.

Nyaktar passou sua infância apenas se divertindo, mas quando chegou à adolescência percebeu a grande hipocrisia em que toda a sua raça estava imersa e decidiu pôr um fim a isso. Lentamente ela foi conquistando a confiança, o respeito e a admiração do povo enquanto plantava pensamentos de discórdia e caos por onde passava. Em poucos meses, os mudrosts começaram a ser agressivos uns com os outros, e por não saberem como lidar com esse tipo de situação, a sociedade começou a entrar em colapso, levando a anos e mais anos de caos.

No posto de uma das grandes mentes de sua geração, Nyaktar guiou alguns poucos sobreviventes até o portal que se abriu sem explicações e que levava para outra dimensão, dizendo que ficaria para tentar consertar as coisas. Na verdade, ela só queria acompanhar até o fim o que ela tinha iniciado. Sem mais nada para fazer, ela decidiu entrar no portal para onde levou os sobreviventes de seu massacre para terminar o serviço ou encontrar algo mais interessante para se distrair.

Durante a viagem dentro do portal, sua mente pôde perceber parte do mistério por trás da existência do fenômeno. Parecia ser uma espécie de falha na realidade que ligava todas as dimensões na origem da anomalia. Porém, como não se interessava por isso, ela não analisou além do que ela já considerava óbvio. Chegando à Terra, ela se viu entre o portal e alguns funcionários da fronteira. Ela olhou ao seu redor e se impressionou com a quantidade de raças entrando e saindo dali e logo imaginou as inúmeras possibilidades à sua frente.

Sem saber o idioma local, ela tocou em um dos funcionários por alguns segundos, entrou em sua mente e absorveu suas memórias e conhecimentos, resolvendo seu problema inicial. Porém, o funcionário era um golem de pedra e sua memória fez com que Nyaktar ficasse curiosa a respeito dos humanos. Devido à alta periculosidade daquele serviço, nenhum humano era louco o suficiente para aceitar. Com mais um toque, ela convenceu o guarda a deixá-la passar.

Depois do bloqueio da fronteira, ela parou para admirar o fluxo de seres e as luzes da cidade grande com seus prédios de concreto e uma arquitetura totalmente diferente do que estava acostumada. Imersa em seus pensamentos, ela caminhou tranquilamente até a rua e foi surpreendida ao ouvir seu nome sendo chamado. Ao olhar para a esquerda, ela se deparou com Jeff, Beatrice e Peter carregando algumas sacolas. O mudrost não foi capaz de conter sua alegria ao vê-la e correu em sua direção. Porém, a atenção de sua heroína se voltou para o policial humano.

- Eu não consigo acreditar que você está viva, Nyaktar! - exclamou Jeff. - Não que eu quisesse que estivesse morta, na verdade eu admiro muito a sua existência e sou grato por ter salvado a minha vida anos atrás.

- Fico grata pelo carinho, mas acalme-se jovem. - disse Nyaktar. - Acabei de chegar e não tenho boas notícias sobre Quantum. Nosso planeta está oficialmente morto.

O rosto do policial se encheu de tristeza e toda a sua empolgação foi exterminada pela terrível notícia que sua salvadora trouxe. No fundo, ele acreditava que seria possível retornar à sua terra natal e reconstruir a sociedade que tanto amava. Sem forças para perguntar detalhe sobre o ocorrido, Jeff se afastou da mudrost e foi consolado por um abraço de Beatrice. Peter se aproximou da comoção, sem saber como confortar o amigo. Nyaktar aproveitou a chance e tocou na testa do humano por alguns segundos. Uma sensação estranha, diferente de tudo o que conhecia e que foi incapaz de entender invadiu sua mente. Ela viu a porção da história da humanidade conhecida por Peter e se admirou com o fato do que eles ainda não tinha se destruído, mas estranhamente não teve vontade de mexer com a mente do homem.

- É... Isso é um "olá" para a sua raça? - perguntou Peter, estranhando o dedo da alienígena em sua testa.

- Só para mim. - disse a mudrost, recolhendo sua mão para suas costas. - Agora já sou quase uma especialista em humanos. Obrigada pelas memórias.

- Você violou minha mente?

- Só queria saber mais sobre os humanos, relaxe. Aliás, escolhi um nome melhor para usar aqui na Terra. Podem me chamar de Anabelle de agora em diante.

- Esse nome não me traz boas lembranças, mas vou respeitar a escolha.

- Tive meus motivos. - Anabelle riu um pouco. - Bem... Eu tenho que ir. Cuidem bem do Jeff.

Indiferente aos sentimentos do mudrost policial, Anabelle deixou o local a fim de explorar a cidade. A pesquisa na memória de Peter revelou ela seria capaz de destruir aquele mundo em algumas semanas, mas isso não pareceu nada divertido. Ao invés de ter uma curta jornada de diversão, ela preferiu aproveitar o cenário em que se encontrava. A Baía dos Lírios tinha um solo enorme e fértil para que desastres pudessem nascer e Anabelle decidiu que seria a responsável por plantar as sementes.

Baía dos LíriosWhere stories live. Discover now