Amaldiçoada

1 0 0
                                    

Chovia muito naquela tarde, após dias de seca e um reinado absoluto do Sol. Castiel se despedia de algumas poucas almas que vieram à igreja para se confessarem ou em busca de conselhos. O anjo caído deixou as grandes portas de madeiras abertas para que qualquer alma perdida que precisasse de um abrigo seco, quente e aconchegante. Como tudo parecia calmo, o padre se dirigiu à seus aposentos, ansioso para checar o progresso em sua ampulheta. Entretanto, ele foi interrompido por passos apressados e gritos por socorro. Um casal de humanos entrou na igreja, encharcados e aparentemente desesperados. Castiel partiu em socorro dos dois, oferecendo toalhas e um ombro amigo. A mãe caiu de joelhos no chão, em prantos, completamente incapaz de dizer uma palavra sequer. O pai estava abalado, mas não tanto quanto sua mulher, então se apressou em explicar sua situação ao padre.

O casal tinha uma filha de quatorze anos que teve seu corpo invadido por um espírito de outra dimensão. Essa entidade queria tomar a alma da menina para si e sair pelo mundo causando dor e sofrimento em sua jornada. Castiel se viu incapaz de negar os pedidos de ajuda e deixou os dois na igreja, correndo depressa para o templo de sua colega. Luna estava cochilando em seus aposentos, reduzindo o consumo de energia de seu corpo para não sentir fome e economizar seus mantimentos, que já estavam perto de acabar. O padre costumava ser muito educado, entrando apenas quando lhe era permitido a não ser em casos de emergência. Então Castiel abriu as portas do templo, pegou uma frigideira na cozinha e começou a bater nela com uma grande colher de metal.

A sacerdotisa acordou puta da vida, mas logo deduziu do que se tratava. Não era a primeira vez que o anjo caído a acordou daquela maneira. Engolindo a raiva como um incômodo comprimido, Luna saiu de seu conforto para atender aos pedidos de ajuda de seu colega. Castiel explicou a situação, dando uma grande ênfase no estado dos pais. A mulher abriu um caderninho de bolso que guarda em uma gaveta de uma escrivaninha na sala. Lá, havia quase cem riscos de caneta, contabilizando o número de exorcismos que a dupla realizou nos últimos anos, enquanto suspirava profundamente. Sem mais o que questionar, ela pegou os suprimentos necessários para o ritual e seguiu seu companheiro de volta à igreja.

Chegando lá, o casal agradeceu inúmeras vezes enquanto guiava a dupla de religiosos pelas ruas da Baía dos Lírios até uma pequena casa de madeira na periferia da cidade, próxima à floresta. Havia buracos nas paredes e a estrutura precisava de reparos urgentes, indicando uma baixa renda por parte da família. Luna se identificou com o drama da escassez de recursos e tomou a frente, disposta a dar tudo de si contra a entidade maléfica que ousou perturbar a paz daquelas pobres almas.

Tudo estava escuro no interior da casa e um forte odor de umidade rapidamente preencheu os pulmões de todos. Havia apenas uma sala, um banheiro, uma cozinha, um quarto e um porão, onde diziam ter prendido a garota. O ranger de seus passos na madeira velha e mofada acordou a criatura, que emitiu um poderoso rosnado, penetrando nas mentes dos pais. Luna e Castiel estavam acostumados com esse tipo de situação, então apenas apressaram seus passos.

O casal permaneceu na sala, rezando e se lamentando. Era a melhor forma de evitar traumas e assegurar que ninguém se incomodaria com os métodos nada ortodoxos da sacerdotisa. A porta do porão era grande e tinha diversas fechaduras, correntes e cadeados. Castiel suspirou ao encarar o molho de chaves dado a eles pelos pais. Sem paciência para isso, a sacerdotisa pediu para que o anjo caído usasse sua força sobre-humana para partir as correntes. Lá dentro, havia uma garota acorrentada em uma cadeira, magra com pele azul escuro, quatro braços e três olhos vermelhos, sendo o central maior do que os outros. Seus cabelos roxo escuro iam até o chão e seus dentes pontiagudos estavam cerrados com força, demonstrando uma raiva descomunal vindo do ser. Era difícil imaginar que se tratava de uma humana.

- Que tal pularmos as preliminares e irmos direto à parte onde você volta pra sua dimensão? - indagou a sacerdotisa.

- Tolos!

Sua voz era uma mistura de sons espectrais com a voz original da humana e seu grito lançou uma forte rajada de vento, quase derrubando a dupla de exorcistas.

- Decreto aqui, em nome de Oahd'ils que não sairei do corpo desta terráquea!

- Lá vamos nós de novo... - reclamou o padre.

- Vocês demônios intergaláticos são todos iguais. - disse Luna. - Gritam, deixam os hospedeiros esquisitos, falam palavras que eu sou incapaz de pronunciar e acabam perdendo depois de umas belas pancadas. Facilita aí pra mim, meu chapa.

A'lduf imbecil! Não sabe com o que está lidando!

- Estou aqui em nome de um deus bondoso e que não gosta de machucar criancinhas. Você mexeu com uns pobres coitados só pra fazer eles se sentirem ainda mais miseráveis e isso eu não posso tolerar!

Luna pegou um frasco de água benta e despejou sobre a cabeça da criatura, que não demonstrou reação alguma. Castiel e a sacerdotisa se encararam, confusos e ela repetiu o processo, sem sucesso.

- Eu deveria me incomodar com isso? - perguntou a criatura, confusa.

- Bem... É um líquido abençoado por um ritual sagrado para ferir almas malignas. - respondeu a sacerdotisa.

A'lduf acéfala! Não vê que há um grande mal entendido? Não me apoderei deste receptáculo contra a vontade de Amanda!

- Espere um pouco. - disse Castiel. - Explique melhor essa história.

- Eu habitava um cubo de cristal há eras, porém fui encontrada por esta jovem terráquea e seus lamentos me despertaram. Seus progenitores a submetiam a situações humilhantes, degradantes e dolorosas. Então, atendi seus pedidos e dominei seu corpo. Infelizmente, o processo foi muito lento e eles foram capazes de me prender aqui embaixo.

Os dois religiosos se encararam. Castiel usou seus poderes infernais para entrar na mente da entidade e conferir a veracidade dos fatos. O que a criatura dizia era verdade. Então, Luna ficou com Amanda no porão e o padre saiu, dizendo aos pais que precisava de mais equipamentos e foi atrás de Peter. O policial e sua parceira boneca chegaram rapidamente e logo começaram a colher amostras e o depoimento da garota, levando à prisão do casal. A entidade permaneceu no corpo de Amanda e as duas almas passaram a conviver pacificamente desde então. Ela nunca mais foi machucada por ninguém.

Baía dos LíriosWhere stories live. Discover now