Malvados anônimos

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Uma semana difícil de provas e entregas de trabalho deixaram Mandy exausta, se jogando em sua cama assim que chegou da faculdade na sexta-feira à noite. Com o fim de suas provações, a garota pôde finalmente relaxar um pouco e resolveu espionar seu vizinho. Porém, assim que ela se levantou e pegou o binóculo de sua mesa de cabeceira, lembrou-se dos resultados de sua última tentativa de provar a maldade do Sr. Billy. Sentindo o amargo gosto do fracasso em sua boca, a garota desistiu da ideia e resolveu sair para comer alguma porcaria.

Depois de andar dois quarteirões, a estudante parou em uma barraca de cachorro quente, pagou e foi comendo no caminho para casa. Mandy começou a questionar o sentido de sua vida, se sentindo culpada por torcer para seu vizinho realmente ser um inumano ruim. Seria isso uma forma de preconceito com inumanos de aparência ameaçadora? Estaria ela apenas querendo passar por uma situação próxima à que lia em seus livros de ficção? Com medo das respostas para estas questões, a garota apenas caminhou de volta para casa.

Ao chegar na esquina de seu condomínio, Mandy observou um acontecimento curioso. Havia carros em frente à garagem que não pertenciam aos moradores. Ativando sua furtividade, a garota se esgueirou pelas laterais da garagem, sendo capaz de ver alguns inumanos conversando enquanto iam em direção ao apartamento de Billy. Aproveitando-se da localização de seu apartamento, a estudante andou tranquilamente, fingindo não se importar com a movimentação suspeita. Os inumanos entraram no apartamento de Billy, reacendendo as suspeitas de sua vizinha, que entrou rapidamente em seu apartamento e correu para seu quarto, permanecendo em silêncio na esperança de ouvir a conversa do outro lado da parede.

Era possível ouvir o som das conversas, mas a espessura da parede impedia qualquer entendimento, frustrando a estudante, que acabou adormecendo pouco depois de duas da manhã. Mandy acordou assustada ao amanhecer e iniciou sua rotina matinal, determinada a descobrir o que Billy estava tramando. Sua obsessão voltou a guiar suas ações, fazendo-a ficar atenta todas as noites que se seguiram. A passou a ir direto para um arbusto na garagem assim que chegava da faculdade, à espera dos inumanos.

Sua tocaia demorou uma semana para dar frutos, pois os inumanos voltaram somente na sexta-feira da semana seguinte. Sua empolgação era grande a ponto de ela usar roupas camufladas para não ser notada. Tudo ia bem enquanto ela observava a chegada dos suspeitos, até que a garota sentiu um bafo quente em sua nuca e saltou do arbusto por impulso. Ao olhar para trás, assustada, a garota se deparou com um lobisomem, que a encarava com desconfiança.

- B-boa noite! - disse a garota, enquanto tentava se levantar.

- Boa noite... Você está bem? Não queria te assustar.

- Estou ótima! Melhor impossível! Acho até que vou voltar para casa agora.

- Espere um pouco.

Mandy já tinha se virado e estava pronta para correr, mas a voz grave do inumano a fez congelar. Sem muitas opções, ela se virou lentamente, suando frio. O grande lobo bípede se aproximou da garota e colocou suas enormes mãos em seus ombros.

- Por acaso você veio para a reunião?

- N-não, eu só moro aqui perto e... Estava caçando insetos!

- Não precisa se envergonhar, eu sinto o cheiro de curiosidade de longe! Sei como a primeira vez pode parecer vergonhosa, mas não há porquê se preocupar! Vamos, eu entro com você.

Escapar era um sonho distante naquele momento, quase levando a estudante aos prantos. Porém, ela se esforçou para manter a calma enquanto era guiada até o apartamento de seu vizinho. Em sua mente, a garota amaldiçoava sua idiotice monumental e repassava sua vida, se preparando para um fim trágico e vergonhoso. Ao cruzar a porta, os dois atravessaram um corredor e chegaram à sala, onde havia um círculo de dez cadeiras de madeira, estando três vazias. Na outras, estavam um orc negro, um ciclope, um ogro, um humanoide com o corpo feito de um líquido gelatinoso azul escuro, uma succubus, uma garota com o corpo cheio de remendos e membros de diferentes etnias e um humanoide com um imenso buraco no lugar de seu rosto, por onde caiam alguns vermes. Billy não estava presente, apenas aumentando o desespero da humana, que sentou-se ao lado do lobisomem em uma das cadeiras vazias.

Todos pareciam se conhecer e começaram a conversar casualmente sobre assuntos do cotidiano. Tudo normal, exceto por alguns comentários sobre o número de vezes que tiveram vontade de matar e coisas do tipo. Uma eternidade se passou para Mandy, que equivaleu a dez minutos no mundo real e o anfitrião finalmente saiu de seu quarto. Neste momento, a estudante teve a certeza de que seria seu fim. Porém, ele parecia alegre e ao notar a presença de sua vizinha, foi possível ver que o inumano teve que segurar sua vontade de rir.

- Boa noite senhores e senhoritas. - disse Billy. - Vamos iniciar mais uma reunião dos M.A., os Malvados Anônimos. Lembrem-se, nascer mau é uma obra do destino, mas permanecer assim...

- É uma escolha! - disseram os inumanos em coro.

No fim, as reuniões suspeitas não passavam de um grupo de seres que foram criados e cresceram nas trevas, mas que queriam mudar de vida e se tornar inumanos melhores. Mandy ouviu atentamente às histórias de como o lobisomem passou uma semana sem comer carne, como a succubus teve uma recaída dois dias antes da reunião e acabou roubando a energia sexual de um homem depois de uma balada, as dificuldades de aceitação da mulher remendada e os sons incompreensíveis emitidos pelo inumano sem face. Todos os relatos só fizeram a garota se sentir pior em relação a sua obsessão, fazendo-a admitir seus pecados em frente a todos. Para seu espanto, nenhum dos inumanos pareceu se ofender e a reunião continuou tranquilamente.

O grupo partiu por volta de duas da manhã, restando apenas Billy e a humana no apartamento. Em uma tentativa de compensar seus falhas, ela decidiu ajudar seu vizinho a arrumar tudo antes de ir embora. A arrumação foi rápida e Mandy estava livre para partir, mas decidiu acertar as coisas com o inumano antes:

- Billy, eu queria me desculpar de novo por ser uma completa idiota. Mais uma vez deixei minhas fantasias dominarem minhas ações sem um único motivo decente.

- Acho que já lhe falei isso, mas você não precisa se preocupar com isso. O pessoal até gostou de você.

- Como pode me dizer para simplesmente ignorar isso? Você tem provado que é um bom inumano desde que chegou, mas eu insisto em achar o contrário sempre que tenho a oportunidade. Não me espantaria se você me odiasse.

- Já disse que você pode ficar tranquila. Mesmo que hoje em dia eu seja apenas um simples jardineiro, em um passado distante eu trouxe a ruína e o caos para meu mundo, cobrindo-o com um reinado de escuridão e dor por séculos. Fui derrotado e aprisionado em um artefato por uma eternidade, sendo libertado aqui nesta cidade. Inicialmente eu iria destruir este mundo, mas a cidade me deu uma oportunidade de recomeçar. Desde então, tenho me esforçado para manter esta mudança.

- Obrigada, agora eu só me sinto mais culpada ainda.

- Não foi minha intenção. Você está certa em suspeitar de mim. Ainda que esteja nesta forma menos ameaçadora, ainda emano energia negativa naturalmente. Você deve ter uma alta sensibilidade para isso, então é natural que me veja com desconfiança.

- Sensibilidade para o oculto? Será? Espero que esteja certo, porque isso é muito legal.

- Não posso te dar certeza sobre isso. Enfim, não se pode fugir do passado, mas é possível construir um novo futuro. Então o que me diz, amigos?

O inumano estendeu sua mão para a humana com um sorriso no rosto. Mandy aceitou que sempre desconfiaria de seu vizinho, mesmo sabendo que ele não era mais um deus da destruição e que estava tudo bem com isso. Sem culpas ou arrependimentos, a garota apertou a mão de seu suspeito favorito, confirmando o início de uma relação peculiar de amizade.

Baía dos LíriosWhere stories live. Discover now