CAPÍTULO 10

955 76 20
                                    


O HOJE ESTÁ SENDO como se o ontem não estivesse existido, como se Natália não tivesse se materializado em meu quarto na noite passada para dizer que adoraria me ver morta, ficou para trás, assim, como se não passase de um pesadelo que no final você teria de acordar e lidar, porque afinal, não passou de um sonho ruim.

A música clássica que Natália fazia questão de enfatizar que amava, tocava ao fundo como efeito sonoro de um filme de terror em que fazia você ficar com medo em antecipação, quando uma assombração estava prestes a aparecer de surpresa.
Não pude conter o frio na barriga, era a festa de noivado de Natália. Toda sorridente, ela encantava a todos com seu sorriso com covinhas e beijos apaixonados com seu futuro marido.
Tudo parecia perfeito, se eu não conhecesse a podridão de Natália como conheço a palma de minha mão.

A festa acontecia no Jardim de nossa casa, um espaço amplo e bem reservado. As flores que mamãe tanto estimava trazia uma sofisticação e simplicidade ao ambiente. O almoço e o vinho eram servidos para os amigos íntimos e parentes mais próximos, afirmara Natália. Mas pra mim mais parecia um baile para um vilarejo todo, como nos livros de época que li. Eram muitos "amigos íntimos" e "parentes próximos" que eu nunca nem sequer vira na vida.

-Quanto tempo você dá até o divórcio? -Um Christian de ressaca perguntou a uma Anahí estática.

Anahí revirou os olhos.

-Só estou aqui para dar apoio á Dulce. Nem sei por qual motivo Natália nos convidou. Não parece estranho?

-Não, a naja quer que vejamos que ela está feliz. -Christian disse óbvio- mesmo que seja de mentira. -Acrescentou.

Incrível como Chris não perdia o humor mesmo estando de mal humor ou caindo de náusea.

-Pois para mim eles parecem felizes de verdade. -Maite deu de ombros.

Todo mundo ficou quieto, pois já estávamos todos acostumados com a Maite-que-sempre-vê-o-lado-bom-das-coisas.

-E você, Dulce? Por que está tão calada? -Anahí questionou.

-ah...

Christian me interrompeu.

-Ela não está satisfeita com a bofetada que deu ontem em Natália, está arquitetando algum plano maléfico ou arranjando algum pretexto para esbofeteá-la como uma louca desvairada, como sempre sonhou.

-Olha, eu apenas estou na minha. -Disse, na defensiva.

Não que na minha mente eu pensasse muito diferente.

-Você podia ter ficado em casa, não é obrigada a isso. Seus pais iriam entender. -Anahí disse séria.

-Estou bem.

-Ela sempre diz isso.-Murmurou Christian.

***

Passaram-se apenas uma hora e alguns minutos, mas já parecia uma eternidade. Natália estava no Centro do Jardim onde estavam todos, com os braços entrelaçados no de Alfonso.
Quando o discurso dela começou, pude sentir a onda de deboche que emanava de Christian e as mil voltas que os olhos de Anahí reviravam à medida que ela falava o quanto estava feliz e o quanto era merecedora da felicidade.
Fiquei quieta, como quem não concorda nem discorda.
Porém foi o ápice da quietude quando Alfonso passou a descrever a noiva como altruísta, carismática e alma bondosa.

-Está mais para vigarista, megera e espírito de porco.-Disse Christian em um tom infame.

-Shhh...-Maite reclamou.

Os discursos prosseguiram, e eu estava levemente perdida em pensamentos quando ouvi a voz de Natália chamando meu nome.

-Dulce? Irmãzinha, sua vez.-Ela disse com a voz acanhada, meio alterada por conta do microfone.

Olhei para meus três amigos que já me encaravam como um animal que vai pro matadouro. Por essa eu não esperava.

Caminhei meio torto, esperava que não percebessem o quanto minhas pernas tremiam. Eu não tinha medo de Natália, mas nojo por sua hipocrisia e seu talento de ser sonsa.
Como ela podia me dizer as maiores atrocidades na noite anterior e simplesmente no dia seguinte me chamar para discursar na festa de seu noivado? Eu não podia simplesmente pegar minha máscara de dissimulação e ativar o modo nada-aconteceu como ela fazia e lhe presentear com um monte de elogios e fingir o quanto estava feliz por ela. Ela disse que preferia me ver morta algumas horas antes e depois me chamou de irmãzinha.

Quando cheguei próximo à ela, Natália me abraçou. Senti os arrepios em minha pele, meu corpo rejeitando completamente o mínimo toque que fosse seu. Qualquer átomo que existia em mim estava tenso.
Apertei a mão de Alfonso, que me devolveu um sorriso iluminado.
Ele iria se casar com uma mulher que existia somente em seu inconsciente.

-Boa tarde.-Eu disse, para começar.- Então, o que dizer sobre Natália e Alfonso?

Eu dei uma risadinha de nervoso.
Não tinha um elogio sequer que eu pudesse fazer à minha própria irmã, tampouco ao seu noivo, que para mim, era um completo estranho.

-Na verdade, eu fiquei sabendo deste noivado ontem. -Fui sincera- Tudo o que eu pude perceber é que Alfonso parece ser um homem adorável e honesto, espero que ele possa ajudar Natália a melhorar como pessoa cada vez mais...digo, ela já é boa, na verdade...só que...

E enquanto eu tentava encontrar as palavras e elas fugiam, meu mundo parou nesse meio-tempo, Natália e Alfonso não estavam mais ao meu lado, pelo menos eu senti que não estavam. Nem todos aqueles parentes próximos ou amigos íntimos. Nem sequer Anahí, Maite ou Christian.

A figura azul se locomoveu no desfoque que era minha visão.
Eu conhecia aquela silhueta, aqueles ombros largos e aquele jeito de caminhar inconfundível.
Também sabia quem era o dono daquele cabelo loiro que eu adorava bagunçar quando era adolescente.

-Christopher. -O sussurro saiu alto ao som do microfone.

Meu coração ficou descontrolado enquanto ele chegava mais perto.
A emoção não acreditou na razão, isso era peça do meu inconsciente comigo, projetando Christopher agora em minha frente.

Ele estava tão longe, não estava?

E cada vez mais perto.

Na verdade, eu não o via há quatro anos.

E ele não mudara nada.

Ainda estava descrente, até que seus braços me encontraram.

Do Outro Lado Da Chuva | VONDYOnde histórias criam vida. Descubra agora