17 • Sentimentos pintados e registrados

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Eu estava parado ali há um tempo que não posso cronometrar, porque sinto que os minutos tem um significado diferente dos que mostram o relógio.

Eu já podia ver algumas cores no lugar, algumas das minhas próprias tonalidades.

A tela imóvel estava intocada no meio do quarto fazia dias, com apenas o esboço desenhado. Mesmo agora, conseguindo ver com clareza mais da metade das cores na paleta de tintas muito bem enfileiradas, ainda me sentia intimidado por toda aquela nostalgia.

Eu podia me ver ali refletido em meio ao brilho pegajoso, a textura do cavalete era como um espelho, tudo tão real que podia perceber meu passado por entre as linhas que formavam aquela tela.

Não pintava qualquer coisa há anos e sim, a falta era esmagadora.

Segurei um dos pincéis dos potes e me perguntei com qual das tintas deveria começar, e assim que me vi perdido — porque ainda não podia dizer com precisão quais eram todas elas, mesmo que tenha a impressão daquelas que me falta, tenho medo de errar e acabar trocando as cores sem querer.

Busquei em todas as boas lembranças sua imagem, queria que ficasse o mais parecido possível — não com sua aparência verdadeira, mas com a forma que eu lhe enxergava. Muito mais luz do que os olhos podiam ver.

Molhei a ponta do pincel e o parei a centímetros da imagem. Eu não tremia, minha mente não escureceu, e... Eu não estava com medo.

Tracei a cor de seu corpo, sem me atentar aos detalhes.

A música ambiente que tocava era o som de uma cascata junto do canto de pássaros, relaxante. Era como se uma natureza inteira estivesse dentro de mim.

Comecei a tracejar suas curvas, o pincel parecia dançar entre meus dedos, como se tivesse vida própria. A mais colorida das danças, todavia não saberia dizer quem conduzia.

A cada traço ia descobrindo mais de mim e vendo mais dela no quadro. Limpei o pincel e passei para outra cor, dessa vez uma mais viva. Laranja. Essa foi a primeira que ela me ajudou a ver. Quando troquei para o azul lembrei da água me envolvendo e do firmamento sem nuvens daquele dia, onde o claro se misturava ao flamejante, um céu em verdadeiras chamas — queimando-nos só de olhar. E eu queimava naquele dia, sim, queimava de felicidade. Eu rezava para que aquele calor de vida nunca se perdesse.

Nós voltamos à praia depois daquilo, porque avia se tornado nosso lugar especial. Às vezes brincávamos de ver quem encontrava mais conchinhas, e ela sempre trapaceava com suas ostras — e, a propósito, eu guardo todas em uma caixinha — Outras nós íamos conversando enquanto recolhíamos o lixo jogado na praia, aos poucos a limpando e também a nós mesmos.

Mal posso esperar pelos dias de maior calor para enfim podermos ir nadar — e é incrível como ela conseguiu me fazer desejar que esta estação realmente chegue, em outras épocas eu estaria atrasando o calendário, me negando a deixar a estação das chuvas.

Cheguei no verde. Eu nunca gostei de hospitais, e talvez até hoje eu realmente não me sinta totalmente bem indo lá — porque provavelmente até a Cia desejaria que seu trabalho não fosse necessário — Mas eu continuava i lándo, muito mais vezes do que achei que iria por meus pés em uma clínica na v, da.

E no meu mural pendia um folder com informações da Cia e contatos, e eu sabia que Íris adoraria estrelar um conto comigo — embora ainda ache que me daria melhor nos bastidores, claro, se um dia realmente for entrar. Pode ser egoísta, porém ainda preciso me acostumar com essa cor de esperança me colorindo as árvores e completos jardins, preciso entender primeiro o que ela me significa antes de passar essa esperança a alguém e, ao mesmo tempo, acho que seria mais fácil criá-la em mim enquanto compartilho o que tenho e recebo de outros, enfim, ainda não encontrei uma resposta para essa questão.

Senti um pouco de tinta respingar na calça de moletom que usava, sorri, porque era mesmo bom sentir aquela sensação de novo — a saudade acumulada no peito ia se dissipando aos poucos.

Próxima cor: roxo.

Acho que fiquei relutante em sujar o pincel com essa cor, por tudo que ela simboliza para mim. Mas é tão bom andar pelas ruas e ver algo nessa tonalidade invadindo o espaço preto e branco. Como um lembrete de que a pessoa mais importante da minha vida continua comigo, de algum jeito.

Quando fechava os olhos podia sentir o perfume das flores. Ultimamente venho pensando que as cores possuem fragrância, outras sabores e ainda outras lembranças — e o mais importante é que isso vem da sua relação com elas, o azul tem um significado diferente para mim do que para as outras pessoas.

Tudo depende ao que ela está atrelada.

O amarelo me lembrava um par único de touca e cachecol — pois não importa quantas réplicas existam no mundo, para mim continua sendo único — e ao mesmo tempo pensava em Manu, quem sabe a cor de sua alma seja mesmo a amarela.

Agora tracei o vermelho que se juntou ao laranja, e só consegui pensar no quanto aquela mistura me lembrava seu cabelo, na verdade toda ela.

Olhei pela janela e vi a cor do céu mudar várias vezes, totalmente inconstante — me fazia imaginar o que se passava acima dele — Agora as estrelas já o povoavam e a lua pedia por atenção, mesmo que as nuvens invejosas quisessem lhe ofuscar.

Olhei para a tela quase pronta, depois para o céu estrelado e novamente para a pintura. Uma lâmpada me brilhou na cabeça e meus dedos começaram a traçar um caminho com o pincel pela tinta querendo secar.

Fiz estrelas. Fiz constelações. Uma galáxia infinita por seu corpo.

Afastei-me dois passos quando julguei ter terminado — ou pelo menos meus olhos cansados assim desejavam — Limpei o pincel da vez e o guardei junto dos demais, afinal, a tela merecia descansar assim como eu.

Se objetos podem pensar então eu a deixei sozinha para isso enquanto tomava banho, permitindo que fosse para o ralo toda sujeira, cansaço e também inspiração — por hoje já tinha sido suficiente — Voltei e a vi me esperando, lhe dei boa noite e prometi que nos veríamos na manhã seguinte — e que eu finalmente lhe daria os acabamentos que merecia junto da moldura comprada e guardada no armário.

Mas, antes de apagar a luz e me entregar de corpo e alma a cama, consegui refletir sobre como o que pintava na verdade era muito mais um reflexo de todas as minhas descobertas e maturidade desenvolvida em todo um ano — e, claro, minhas barreiras quebradas e alicerces que me permiti repensar.

Decidi me dar os parabéns e dizer a mim mesmo que estava orgulhoso de quem vinha me tornando.  

cαвєlσѕ αrcσ-íríѕOnde histórias criam vida. Descubra agora