Trilha: TPR - Force Your Way
Os dedos de Misael passaram pela tela do celular e contemplaram os 7% de bateria, seis ligações de seu amigo e muitas mensagens perguntando onde ele estava. Indicado pelo homem, ele deveria ignorar as mensagens, por enquanto
Sentado na cama, já de sapatos, ele não conseguia deixar de olhar para o corpo da mulher mais à frente, entre o espelho e a porta. Não tinha nenhum ferimento, não tinha sangue ou hematomas. O vestido estava igual quando a viu pela primeira e única vez. Os olhos e a boca foram fechados. Não respirava.
Misael não sabia se aquela tranquilidade era o efeito de alguma droga ou se estava ficando louco. Havia um cadáver na sua frente, mesmo não parecendo. Um homem de terno sem gravata e sapatos novos olhava pela janela como se espionasse a rua.
Ele lembrou do banheiro, do sujeito magro, do beijo e... Nada mais. Um vazio que se completava com a cama de lençol branco neste quarto pequeno de algum motel.
Sem sair da cama ele viu que há apenas duas portas: uma para o banheiro e uma para saída. Ele não se atreveu a ir a nenhuma das duas.
A perna se agitou quando a bateria chegou a 6% e o motorista enviou uma mensagem.
— Ele está aqui.
O homem fechou a cortina apontou com a cabeça a mulher deitada. Misael se pôs de pé com esforço e uma risada nervosa estacionou na sua garganta tamanha era a loucura daquilo. Ele ergueu o corpo da mulher nos braços como se levasse sua noiva. O sujeito abriu a porta deixando o caminho livre.
Misael viu o corredor de paredes marrons e meia dúzia de portas. Também viu uma câmera no final dele.
"Tô muito fodido..."
Caminhou devagar com o peso nos braços e a cada passo se imaginou sendo preso, ou a mulher acordando e ele deixando-a no chão e correndo. Imaginou tomando um tiro depois de tudo e fim. Como se envolveu nisso? Ele só queria sair e beber com seu amigo, que deve estar caído na cama de alguém. Misael não queria problemas, só ter uma noite de sábado longe da merda do trabalho e dos colegas do trabalho que não serviam pra nada.
Ele conseguia ouvir os passos do sujeito atrás dele. Como um carcereiro da cadeira elétrica. O corredor terminou e a recepção do motel era simples e com um sutil glamour decadente. A atendente deixou o cigarro no cinzeiro e tirou um dos lados do fone de ouvido, abriu bem os olhos e colocou a mão devagar sobre o telefone.
"Você vai fazer o que eu mandar, direitinho."
Os passos do homem tinham desaparecido. Misael fez um giro sutil com a cabeça, mas o cara não estava mais atrás.
"Só fazer o que eu mandar."
— Boa noite... — ele começou ajeitando a mulher delicadamente no braço — É o quarto três. A chave está... — ele sentiu a chave no bolso da frente onde antes não estava — Posso só deixar ela... Ali, no carro ali..., ele acabou de chegar. Ela bebeu, passou mal e não vai acordar tão cedo.
A atendente firmou a mão no telefone e só balbuciou um "okay".
"Deixa no carro no banco de trás, fala com o motorista que vai fazer o pagamento e deixa a porta do carona aberta."
— Boa noite, meu amigo, pode me ajudar aqui?
O motorista saiu desconfiado e andou devagar olhando a cena:
— Hospital?
— Não, não é pra tanto... — riu pra preencher a frase — Bebeu, passou mal e dormiu, preciso só ir pra casa e deixar ela na cama.
— Parceiro, tem certeza? Se acontecer algo, não quero me ferrar — disse o motorista ainda sem abrir a porta.
— Fica tranquilo, não vai acontecer nada. Mulher que é fraca pra bebida.
— Olha bem...
— Pode deixar, só preciso colocar ela deitada para aliviar o braço e pagar o quarto.
O motorista abriu a porta e nem tocou na mulher desmaiada.
— Mano, ela está gelada!
Misael engoliu seco e terminou de ajeitar a passageira moribunda antes de falar:
— Dormiu de frente pro ar condicionado lá em cima — deu metade de uma risada — Vou só pagar e volto rápido pra não te atrasar.
O motorista deu a volta para entrar no carro e Misael foi pagar o quarto. No meio do caminho fechou os olhos, deu um tapa na testa e voltou:
— Amigo, pode deixar a porta aberta para circular um ar — ele já foi abrindo a porta do carona e nem olhou para a resposta do motorista. Só se virou.
Já de costas para o carro, fechou os olhos temendo o pior. Bateu uma vontade de chorar.
"Pague em dinheiro."
Atendente o olhava com os olhos serrados.
— Foi... Deu quanto?
— Noventa — falou como se esperasse uma brecha.
— Aqui está. E esse é a gorjeta pelo atendimento — piscou para a atendente e sorriu maliciosamente.
A mulher quase desmontou. Ele nunca saberá se foi por causa da nota a mais ou pelo sorriso. Mesmo assim, ele espera que tenha sido o dinheiro e que ela não lembre dele se a polícia bater ali.
Andando para o carro massageando os braços, viu o banco do carona ocupado e o motorista com as mãos no volante, com a cabeça fixa pra frente. O homem de barba ocupava o carona com a mão na coxa do motorista.
— Sente aí atrás — disse para Misael sem emoção — Pode seguir pela principal — ordenou ao motorista que guiou o carro para fora do terreno do motel devagar.
Misael soltou todo o ar e uma tremedeira rompeu do peito e foi até as pernas. Os braços e as mãos estavam gelados e agitados, ele não conseguiu controlar nem seus nervos nem o medo.
— Se acalma que você fez direitinho — falou o homem no carona.
O celular vibrou. Misael viu que a corrida foi cancelada.
— A... A corrida...
— Não vamos precisar do telefone. Sei o caminho e vou guiar nosso amigo até lá.
O olhar do homem barbudo para o motorista era maníaco. O pobre condutor só olhava pra frente, o suor do horror escorria nas suas têmporas enquanto o carro seguia pela rodovia, o motorista, se não bastasse a situação incoerente e visivelmente errada, estava sob a mira de um olhar azul surreal e algo na sua coxa.
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Sob a noite
Mystery / ThrillerUma infinidade de gestos, olhares e desejos ganham força à noite. Muitos fazem o que querem quando estão na meia luz. Corpos são largados por aí ainda sujos de prazer, tremendo de medo, quentes ou vazios. Todo mundo olha para noite como alforria par...