8. Refúgio

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Trilha: Naked – The Delta Riggs

— Pronto, seu Misael — disse o porteiro entregando a chave — Essa fica com o senhor, essa comigo, assim que fizer uma cópia me devolve que eu tenho que colocar de volta lá embaixo.

— Obrigado, Basco — respondeu com um sorriso falsamente desanimado.

— O senhor está bem mesmo? Foi na delegacia fazer o boletim?

— Fui, está tudo bem, desculpe te atrapalhar — disse já com um pé dentro do apartamento.

— Fica em paz, seu Misael, tomara que suas coisas apareçam — disse guardando a chave no bolso — Mas do jeito que a violência tá, o melhor mesmo é a gente ter a nossa vida. Se vão os anéis, ficam os dedos, não é?

— É.

Despediu-se. Enquanto Basco descia as escadas, Misael trancava a porta por dentro, com a testa nela, de olhos fechados. Procurando, pela centésima vez sentir o afago do ar nos pulmões, mas só sentia um roçar incômodo e dispensável.

Soltou o ar, tomou coragem e virou.

O apartamento, como uma pintura de natureza morta, refrescava sua memória. A cozinha meio arrumada do jeito que deixou, o sofá com a camisa que não usou, a mesinha de centro com a garrafa de cerveja abandonada pela metade, o cigarro que foi fumado antes de ir apenas pelo prazer de fumar e se mostrar descolado. Caminhou pelo tapete e viu o aquário, o peixinho negro azulado boiava de lado.

* * *

Fizera uma grande limpeza. Tirou o lixo da cozinha repleto de larvas que se espalharam pelo chão. Livrou-se da comida estragada na geladeira e quaisquer vestígios daquela sexta que antecedeu à Psycho. Jogou fora as roupas que usava. Tomou banho, tocou a pele e sentiu a frieza. Prendeu a respiração embaixo d'água do chuveiro, enquanto apoiava a mão no meio do peito.

Inacreditável.

Secou-se com calma de frente ao espelho. Contemplou sua nudez. Percebeu que as poucas linhas do corpo que manteve com academia no início do ano estavam firmes com estranha simetria. Os pelos em todas as partes do corpo tinham o mesmo tamanho, o ferimento do peito secara como uma espinha. A pele estava levemente pálida, as veias saltavam roxas ou verdes e as marcas e cicatrizes que tinha nas mãos desapareceram. Os cabelos formavam ondulações perfeitas acima e a barba estava por fazer, mas alinhada como num modelo de publicidade rebelde.

Aproveitou o momento Dorian Gray, fez a barba, removendo tudo e admirando as linhas lisas e suaves.

Foi ao quarto e contemplou o armário e seus pensamentos. Escolher roupas para sair quando Antony chegar ou se vestir algo confortável para dormir? Será que poderia manter o trabalho ou agora teria que servir aos caprichos do seu capturador? Gravata ou t-shirt? Iria àquele bar agora como um membro? Sapatos? Barba? Coçou o queixo, no intervalo dos pensamentos, e sentiu os pelos ásperos. Conferiu no espelho do quarto e a barba surgira como antes. Deixou as roupas escorregarem até chão, tocou a pele, sentiu os pelos e caiu sentado na cama.

— Puta merda...

* * *

A noite seguiu com um romance água com açúcar na TV — CEO e menina virginal. A roupa social já amassada, os sapatos jogados no canto e recapitulando tudo que aconteceu desde a boate. Cogitando a ideia de loucura como uma constante.

Eles existem. Não respiro. Morri. Voltei. Matei uma mulher. Estou no meu apartamento.

O conforto do sofá era tão agradável que permitiu tais indagações, quais seriam os próximos passos, o que precisaria saber, se teria alguma função e se aquela sociedade era uma empresa privada.

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⏰ Última atualização: May 27, 2021 ⏰

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