3.6. O problema com a bebida

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Trilha: Dark Waves – Robot Koch, Delhia De France

— Doutor — disse o jovem líder com uma careta disfarçada — Limpe isso, não precisava ser dessa forma.

— Senhor — a voz áspera e mucosa — O que o senhor quiser. Só fiz assim pra que a mensagem seja levada por aí. Aliás... — guardou a cabeça dentro do sobretudo — ...serve melhor de aviso.

O silêncio se prolongou. Michaela cerrou os olhos ouvindo as palavras proferidas da besta pustulenta, já Cássio deu um murro na parede com as costas da mão, o que chamou atenção de todos para o barulho, obrigando Misael descobrir os olhos e ver o corpo na cadeira, sem a cabeça, com pedaços disformes de canos sacudindo com o gases que se projetavam para fora do corpo. Seus olhos encheram d'água, sem piscar, contemplando o corpo moreno. A criatura pequena e deformada chamada de Doutor, com toda a calma de um cuidador, removeu as fivelas que prendiam os braços de Lúcia ao assento e tirou o corpo do móvel, derrubando-o no chão por não aguentar o peso e arrastando até a porta de onde ela saiu. Sacrificante ver todo o esforço para levar o cadáver.

Misael continuava olhando para a cadeira lavada em sangue. Sua mente não fez questão de ver a cena, mas o barulho da lâmina, os gritos sufocados e o gotejar deu uma noção do que tinha acabado de presenciar. Suas mãos seguravam seus joelhos, o coração batia tão forte que doía o peito. A tentativa de controlar a respiração transformou-a em dor, por mais que ele forçasse manter o ar entrando e saindo devagar para não chamar atenção, a garganta ardia e a vontade de gritar e chorar se acumulava na boca do estômago.

Sem piscar ele ouviu seu nome.

— ...assim que se chama — dizia Antony — Ele está comigo tem uns dias, está sendo muito útil.

— Em que? — perguntou Micaela com os braços cruzados.

— Desculpa o jeito, Micaela, mas isso não vem ao caso — rebateu Antony.

— Minha pergunta é pertinente — disse a mulher cruzando as pernas para o outro lado — Até porque ele viu tudo que está acontecendo, viu todos nós, se ele for pego por qualquer um pode falar mais do que deve.

— Ele não vai ser pego. Está comigo e vai ficar comigo o tempo todo.

— Até durante o dia...? — a mulher disse com um sorriso malicioso e olhos violeta.

— Isso não importa, isso é problema meu, não seu.

— É problema nosso — falou a mulher fechando o rosto fazendo um círculo com o indicador pela sala — Qualquer coisa que coloque minha vida em risco não terá a sorte como ponte. Por mais que você se sinta capacitado para cuidar de uma — olhou para a cadeira — Mulherzinha rebelde, se não nos der garantias que ele está sob controle, bem... — ela encarou o líder antes de prosseguir — ...não é seguro se pautar apenas na parceria das ruas.

Antony apertou os dentes, encarou sua promotora, fechou os punhos e esticou os braços com força. Misael sabia que Antony estava pronto para socar a cara daquela mulher se ela insinuasse mais alguma coisa, e ela faria, com provocação e pedindo para que a razão permanecesse do lado dela. Talvez quisesse realmente isso. Se as penalidades são tão severas e brutais, algo ali poderia fazer Antony ser condenado àquela cadeira também, assim seu capturador estaria morto e ele, Misael, estaria livre. Ao mesmo tempo calculou a chance de se tornar o brinquedo de qualquer um deles, apenas uma bolsa de sangue ou ser cortado em pedaços e jogado em qualquer rio.

— Vou ficar com ele... — falou.

A voz trêmula do mortal se espalhou como uma gota de tinta num lago.

— Levante a mão pra falar — Michaela ergueu o tom.

O rosto fechado e as palavras farpadas da mulher fizeram Misael encolher, abaixar o rosto e apertar mais os joelhos. Se pudesse, colocaria de volta as palavras na garganta.

Sob a noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora