O carro venceu a parte da cidade pouco movimentada em poucos minutos, sem trânsito, sem almas.
Misael ajeitou o cinto de segurança só depois de pegarem a rodovia. Sempre que podia tocava as costelas para sentir a normalidade. A coluna incomodava ainda, mas nada comparado a antes. Os dedos estavam formigando, só não sabia se era resultado sobrenatural ou psicológico da descoberta.
Os pensamentos rodaram a sua cabeça, e desde que saíram da reunião, sentiu seu capturador em puro silêncio contemplativo. Antony coçava a barba de tempos em tempos, num tique. Mesmo depois de tudo o que ocorreu, o motorista seguia olhando para frente, num olhar perdido, com o braço esquerdo para fora do carro, tateando o vento, tranquilo.
— Quero perguntar uma coisa — falou tímido no carona.
— Claro que quer — respondeu o motorista sem tirar os olhos da estrada.
— Sou como você? Vou precisar agora beber sangue de outras pessoas?
Antony acelerou, o motor roncou com raiva.
— Não. Você não é um vampiro, você não precisa matar ninguém, você precisa ficar comigo apenas.
Misael parou e pensou.
— Só isso?
— Só.
Misael olhou para fora, observou essa parte da rodovia apenas com terrenos largos, com grandes galpões de depósitos de fábricas, lojas, produtores de variados segmentos comerciais. Fixou num galpão escuro com a marca de uma grife de botas.
— Eu que fiz o projeto de marketing deles... — cochichou apenas para o vento ouvir.
Olhou para frente, para a estrada monótona com poucos veículos e luzes ao longe mostrando a cidade vivendo em insônia. Seu apartamento era para aqueles lados. Os doces que deixou pra comer depois da boate deviam estar estragados, igualmente como quase tudo da geladeira. Tinha deixado duas cervejas no congelador para quando chegasse. O único ser vivo que residia naquele apartamento era o Figo, sem alimento durante esses dias. Sua família deve ter ligado, mandado mensagem. Seu amigo deve ter ido ao apartamento. Seu emprego... Será que o pessoal do trabalho está se perguntando...
— Já vi essa cara antes — Antony o puxou para a realidade — Entenda uma coisa, você vai precisar se adaptar, é assim mesmo.
— Para onde vamos? — sacudiu a cabeça.
— Preciso encontrar um grupo que está na fronteira e...
— Que perigo é esse todo que estavam falando? Por que aquele cara ficou daquele jeito?
Antony passou a mão na barba.
— Aquele cara é quem manda, cuidado como você fala, como você olha pra ele. Ele não precisa mover um músculo para te dividir em dois. Nem estou falando dele te rasgar, tem gente que faz isso por ele só para ter esse prazer e ganhar um voto de confiança.
— Como você fez.
Antony tirou os olhos da estrada e encarou o mortal. Misael sentiu o que fez. Pela primeira vez viu os olhos claros do vampiro ao seu lado ganharem, gradualmente, aquele azul vindo de um sonho. Ele conseguia assistir a íris sendo preenchida de dentro para fora como se cada filamento se tornasse mar. O azul empurrou o corpo de Misael contra o banco, ele fechou as mãos entre as pernas e olhou para frente.
* * *
A rodovia se bifurcava. Um dos lados adentrava a cidade até a parte mais abastada; a outra, completamente abandonada pelo governo, mal iluminada ou sinalizada, cruzava bairros tão esquecidos quanto à via até a fronteira com outra cidade.
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Sob a noite
Bí ẩn / Giật gânUma infinidade de gestos, olhares e desejos ganham força à noite. Muitos fazem o que querem quando estão na meia luz. Corpos são largados por aí ainda sujos de prazer, tremendo de medo, quentes ou vazios. Todo mundo olha para noite como alforria par...