6. A Morte

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Trilha: Death Is the Road to Awe (feat. Kronos Quartet) – Clint Mansell

O coração de Misael parou definitivamente. Não como uma parada cardíaca, não como um suspiro preso, não catatônico. Parou. Sua última palpitação ecoou na casca, agitou-lhe os ossos pela última vez.

Findou-se.

Antony se banqueteou na evidente jugular arroxeada, vertendo o sangue em fartos goles, como um desidratado no deserto, sem culpa. Sugou até sentir a bomba no peito parar.

Descolou os caninos da ferida aberta, aproveitando para lamber o fio que brotara. Fitou o corpo de cima abaixo, acariciou o peito, tocou a ferida novamente e, mais por peso dramático que por necessidade, respirou profundamente.

Tirou a navalha do bolso, abriu-a e pressionou contra seu pulso exatamente acima do corte anterior, deixando a pele ceder, criando um lábio da epiderme que envolveu a lâmina fina com marcas avermelhadas de outras vidas. O sangue não gotejou como de costume, se conteve estranhamente na lâmina contra a carne.

Antony, um Bellator da geração passada, uma linhagem orgulhosa pelo seu poderio bélico da Idade Média, que se viu lutando com os próprios punhos contra os vivos e mortos, hesitava. "Coragem...", pensou. Coragem era o que regia sua família, fúria era a essência do seu sangue, e esse que, represado por uma lâmina, representava a dúvida para o guerreiro. "Se já fez até aqui, vai e terminar."

Removeu a lâmina do talho.

O fio escarlate gotejou sobre os lábios entreabertos da carcaça no chão frio. As gotas desciam viscosas pela língua, pelas bochechas, imergiam na negritude da garganta, como um ritual antigo, nada se ouvia, apenas se pedia em pensamento.

Antony apertava e soltava o pulso, controlando o fluxo, assistindo o unguento de sua vida escoar para o defunto. Com a confiança de não ter sido tarde demais, alimentando a opção do fracasso com desdém da mesma forma que nutria que fizera tudo certo. Uma angústia crescia na mesma proporção que esvaziavam suas veias.

A porta de metal rugiu forte como um aríete tentado destruí-la. Logo em seguida o corpo soltou um gemido vindo do inferno. Antony não sabia se os sons foram ao mesmo tempo, ou qual foi antes. A porta ressoou pelas paredes e o urro abissal do cadáver foi acompanhado do movimento do corpo arqueado, com o peito se erguendo para o teto, curvando a coluna. Um gancho invisível puxou o abdômen para cima, apoiando o resto nos cotovelos tortos, com a cabeça forçando as costas mais ainda para trás num ângulo inumano prolongando o grito rasgado e gutural.

O cadáver levantou o tronco rápido o suficiente para ficar sentado e quase bater com a testa nos joelhos. Os braços apertaram as entranhas, as pernas encolheram e, sem equilíbrio, caiu como um feto, berrando entre os dentes sua voz sepulcral, comparável apenas ao único som ouvido no Abismo pelas almas condenadas.

Na sua torturante agonia, o cadáver abriu os olhos para o seu capturador:

— Me-me... Mate...

Observando com os azuis não tão menos assustadores que os gritos agonizantes, ele comentou segurando a testa com uma das mãos:

— Acabei de fazer isso.

* * *

Os olhos pararam por segundos intermináveis. Não havia urros, não havia respiração apressada ou um corpo se agitando. Havia silêncio.

Misael viu Antony sentado escorado na parede, com os cotovelos sobre os joelhos flexionados e a cabeça apoiado numa das mãos, na outra a navalha ainda pingava uma solitária gota.

Misael olhou em volta, Antony se prontificou:

— É uma dispensa de uma fábrica velha. Ali tem um frigorífico ou algo parecido. Infelizmente não foi o que eu esperava, não planejava ser assim, mas... — jogou as mãos para cima, fazendo um gesto de frustração.

— Que dor foi essa?

— Seu corpo morreu de vez.

— Sou...

— Sim, é.

Misael observou Antony, antes imponente, agora reduzido a um qualquer rasgado e ensanguentado naquele lugar. Fitou a si mesmo, tocou suas roupas, o sangue seco em vários locais do seu corpo, sentiu a garganta arranhando, a língua amarga. O chão gelado tinha uma textura mole que seus dedos nunca haviam tocado. Ouviu o ranger de alguma coisa dentro de si, como algo desprendendo e caindo para perto do fígado. Notou que não entrava ar pelo nariz. Puxou o ar e o prendeu. Paralisou. Não sentiu nada. Não queimava os pulmões, não havia incômodo, poderia ficar assim segundos. Ficou minutos.

Antony andou até a grande porta de metal:

— Vou apagar a luz, dorme, mais tarde a gente conversa.

Misael voltou a deitar, se encolheu como uma criança olhando pra Antony.

Breu.

* * *

Acordou. Embora acordar não seria o que realmente acontecera. Não houve um momento do despertar lento, quando seus olhos se acostumam com a luminosidade, ou a sensação de letargia dos sentidos entendendo que alguma atividade começou no corpo. Abriu os olhos e o corpo inteiro já estava pronto, como se não houvesse entrado num mundo de infinitas trevas um segundo sequer.

Viu a mão de Antony estendida para si, não parecia tão dura quanto antes, pelo contrário, haviam linhas que outrora nunca vira, usou como apoio e se ergueu, ficando frente à frente com seu capturador, podendo observar de perto seus olhos claros, marcados por espectros cinzas no lago azul, com ondulações inconstantes que, em sua vã imaginação, entendeu como a verdadeira representação da alma.

O rosto de Antony era mais marcado do que aparentava, não pela decrepitude da idade, mas pelos detalhes das décadas vividas — o que é bem diferente na imortalidade. Linhas iam e vinham em várias direções, criando sulcos que antes não percebera, delineando pequenas expressões mesmo quando, como agora, se está sério compenetrado. Sem perceber, levado pelo afã da curiosidade, tocou, sentindo os poros como crateras lunares, as linhas como trincheiras e as curvas como valas. Os pelos da barba eram arbustos pontudos no início e, mais para o meio, um grupo de trepadeiras que oscilavam entre rosas e espinhos.

Distanciou o toque e olhou para as próprias mãos. Acompanhou também suas linhas que formavam desenhos abstratos e únicos de suas palmas, como em quase todos os humanos, que possuem uma letra na pele feita de curvas talhadas, viu mais que um caractere, viu rios encravados, viu nuvens, o rosto de uma criança, viu um dragão serpente subindo pelo anelar.

— Estou louco — concluiu.

— Não — Antony segurou seu rosto com ambas as mãos como um pai faria — Você está vivo. Venceu a morte em sua colheita, foi o que me disseram uma vez. O que vê é seu novo mundo.

Misael nunca vira aquele brilho nos olhos ou nas palavras do seu sequestrador, nunca sentira um toque tão afável das mãos tão brutas e mortais. Sentiu-se protegido e desejou que aquele momento se prolongasse por mais de um instante. O toque frio da pele de Antony não o incomodava, pelo contrário, se igualava ao seu, e, como iguais, era apaziguador.

Ainda absorto, ponderando o que era e o que é, percebeu uma onda arrepiante vindo do peito para os ombros, pescoço e pernas, perdendo força, mas alcançando as extremidades. Apertou as costelas, mas não era dor. Respirou por impulso. De olhos abertos, mãos procurando o erro, compreendeu por instinto em sua nova condição o que significava:

— Tenho fome.

Sob a noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora