3.2. Pior que a morte

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Misael desceu as escadas com os braços recolhidos no corpo, com um incômodo no pé, outro na mão enfaixada, caminhando como um animal no curral final. Estava fora de casa há dias, ninguém procurou saber a verdade, sentia as marcas do espancamento e agora seguia ordens incongruentes. A vontade era sair correndo de novo, mancando até o portão e gritar, mas nem o mais louco desejo era suficiente para o convencer a arriscar experimentar de novo a dor. Não tinha forças para tentar alguma coisa. Por dentro, tão quebrado quanto os dedos, ele só esperava ser tratado bem até a polícia o encontrar. Visto pela calça e camisa de bom corte, cinto e sapatos de couro e o banheiro do quarto com produtos importados, o tratamento era requintado e cuidadoso.

No final da escada estava Aldeban, uma verdadeira estátua de cera. Com as linhas do rosto retas e estáticas ele caminhou até Misael, sem mexer nada acima da cintura, roboticamente:

— Boa noite, o carro está na frente, venha, por gentileza.

Misael caminhou, mantendo uma distância segura do mordomo. Esse destrancou a porta pesada e a abriu. Misael hesitou por um momento, não gostaria de receber outro golpe. Colocou só parte do corpo para o lado de fora e viu um belo carro rebaixado, polido e prateado. Um homem moreno e baixo passava um pano rápido no capô. A porta do carona abriu, empurrada por dentro.

Misael voltou para dentro e olhou para o mordomo, esse fez um movimento elegante com a cabeça confirmando a real intenção daquele momento. Misael cruzou a porta querendo voltar, desceu cada degrau da escada de mármore devagar demais até para um pé ruim.

— Boa noite, senhor — falou o rapaz moreno terminando a limpeza — Faça um bom passeio.

Misael balançou a cabeça rapidamente, enrugou a testa e olhou para dentro. Antony estava com uma mão no volante e outra na marcha. Usava terno sem gravata, bem diferente do estilo sequestrador.

— Entra logo — ordenou, provando que só as roupas mudaram.

Misael entrou, sentiu uma fisgada do lado, segurou o gemido, disfarçou e deixou o ar sair quando bateu a porta.

O carro saiu devagar pelo caminho de pedras. Através dos vidros escuros, a imagem do gramado, das árvores, da mansão e qualquer ponto daquele local ganham tons escuros e levemente alaranjados. O ar condicionado estava no máximo, Misael sentiu os dedos da mão e massageou com cuidado, verificou se as talas haviam saído do lugar.

— Toma — Antony entregou uma ampola branca com um líquido — Vai aliviar a dor até o final da noite.

Misael só olhou.

— Vai, pega — Antony nem o olhava — Está com medo de que? Ser veneno ou outro sonífero? Não preciso disso pra te derrubar.

Misael pegou como se fosse radioativo.

— Quebra a parte de cima, consegue?

— Uhum...

Misael virou o pedacinho de vidro entre os dedos, rodou até achar uma posição, mas ele escorregou e caiu. Os dedos enfaixados dificultavam as coisas. Tentou de novo e novamente caiu, no banco, entre suas pernas.

— Deixa eu te ajudar — Antony buscou o frasco ali onde caiu e recebeu um tapa da mão enfaixada antes mesmo de conseguir alcançar o frasco, Misael gemeu de dor — Faz isso mesmo, quer ferrar com teus dedos?

— Que merda... — Misael sentiu toda a dor dos ossos fraturados espalharem pelo pulso, cotovelo, ombro e nuca. Respirou fundo, pegou o frasco com a outra mão e mostrou para Antony — Pode abrir pra mim?

Antony olhou de lado, parou o carro no portão, tirou num movimento só a ampola da mão dele e abriu.

— Obrigado — falou baixo antes de beber o conteúdo amargo.

Sob a noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora