Trilha: Naked – The Delta Riggs
Antes de entrar no carro, olhou para trás, em direção à fábrica, piscou lentamente e não sentiu falta do ar, apenas do ato de suspirar. Sentou no carona, sentiu o cheiro ferroso no banco, no teto, no vidro... Aquele aroma amarrou sua garganta, aqueceu seu peito e estômago. A boca, antes seca, ficou viscosa como mel, amarga como ferrugem.
— Fome — falou Antony se ajeitando no carro, conferindo seus pertences — Ela vai sempre te guiar pro pior se você não controlar.
Antony deu partida no carro. Abaixou o vidro, fitou a fábrica e levantou a mão num aceno comedido. Misael também olhou e viu a silhueta de um homem abaixado na escuridão, semelhante a um doente.
— O que é? — perguntou.
— Vou te explicar no caminho — saiu com o carro levantando poeira, segui pela rodovia, que neste início de sábado apresentava um movimento constante de veículos.
A fábrica ficou para trás junto às sombras, e nelas, observando o carro ganhando terreno, a figura abaixada pacientemente pegou um celular dos bolsos puídos, digitou com os dedos largos um número de cada vez, com certa repugnância. Aguardou a ligação ainda olhando para as luzes do veículo se tornarem apenas pontos na imensidão. Na mesma calma, falou:
— Confirmando, senhor, ele acabou de sair com o novato. Sim... Ele fez o Abraço...
* * *
— Foi isso que aconteceu com você — falou Antony com uma mão no volante e a outra dedilhando na porta do carro pelo lado de fora — É assim que chamamos: o Abraço. É quando tiramos a vida de um mortal e o alimentamos em seguida. Revivemos para a uma vida nova, ou não-vida, os velhotes chamam assim.
Misael estava parado, fixo na rua. Embora parecesse não prestar atenção, pelo contrário, concentrava-se em cada palavra dita.
— Continue... — pediu sem expressão.
— Nem todos podem Abraçar, tem membros que não têm esse poder, isso vem com a idade.
— Aquele... Ser... Que olhava pra gente entrando no carro, ele poderia?
— Não sei, mas acho que sim. Ele é um membro novo, mas já tem a confiança do Doutor, então parece ter serventia, já deve ter demonstrado algo além.
Misael desviou o olhar para Antony e cerrou os olhos.
— Sim, eles têm uma ligação. Todos temos, não dá pra viver sozinhos neste mundo maldito.
O recém abraçado continuou olhando.
— Reparou como o Doutor Vax não tem aparência humana? — Misael confirmou com a cabeça — Aquele que estava do lado de fora da fábrica é da mesma linhagem que ele, são Morbus. São assim, feios, parecem ratos sem pelos. Amaldiçoados a não andarem como a gente por aí, só que depois de milênios aprenderam a se esconderem bem, espionando cada canto. Sabe aquela sensação que você tem de estar sendo acompanhado por alguém numa rua escura e deserta? Ou até mesmo sozinho em casa quando olha pra janela. Algumas vezes são apenas sensações que o medo causa, outras vezes é um Morbus te observando.
Misael achou a comparação infantil, como se fosse uma história para assustar criança, entretanto, visto tudo que ocorreu, ele não desconfiaria que, dentro da alegoria contada, houvesse uma verdade sombria e perversa.
— Todos são assim? Horrendos? — questionou.
— Entre os Morbus sim, já as outras linhagens mantêm a aparência quando foram abraçados e boa parte delas... — Antony olhou para Misael pela primeira vez desde que saíram da fábrica — ...ficam melhores.
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Sob a noite
Misterio / SuspensoUma infinidade de gestos, olhares e desejos ganham força à noite. Muitos fazem o que querem quando estão na meia luz. Corpos são largados por aí ainda sujos de prazer, tremendo de medo, quentes ou vazios. Todo mundo olha para noite como alforria par...