3.3. Uma peça importante

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Trilha: Trust in Me – Holly Cole

Branco. Vácuo.

Misael continuou olhando pra Antony sem mover um pelo. Um pilar congelado, olhos vidrados, respiração presa, apenas uma foto. Antony, observando a petrificação, coçou o queixo, caminhou uns passos no mesmo lugar, mencionou falar, mas a estátua sentada interrompeu:

— Calma — respirou — Está de sacanagem, não é?

Antony se aproximou, abriu dois botões mais acima da camisa, piscou lentamente e estendeu a mão como apoio para que ele se levantasse. Misael olhou desconfiado, mas Antony não hesitou e manteve a posição, exigindo. Misael segurou. O homem o levantou com estranha calmaria e pousou a mão não enfaixada entre os tecidos da camisa aberta. Os olhos azuis destacavam-se na face séria e intimidadora, contrastando com a delicadeza que encaminhara a mão do pobre coitado até o peito. Misael sentiu a pele fria, como uma lataria deixada ao relento, a textura era comum, com pelos curtos e afiados, pele normal e macia, mas fria e incômoda, só não mais que o silêncio. Não havia vibração naquele tronco, nem o deslocamento das costelas, não existia fluidez, era apenas um corpo gelado, sem movimento.

A mão de Misael descolou incrédula. Os olhos fitavam os azuis pedindo que não fosse verdade, que fosse um truque. Sua sanidade se estilhaçava em pedaços pelo ambiente enquanto seu próprio corpo entrava em inércia.

Antony fechou a camisa ainda olhando para o descrente, deixou escapar um sorriso maldito e foi até a porta trancada:

— Preciso provar algo mais? — Antony não olhou para Misael que mantinha a mão ainda suspensa no ar — Talvez você precise de um tempo, vou lá fora, fique aqui e tome o tempo que quis...

— Espera...

Antony tirou a mão do bolso e largou a chave lá. Misael se virou com todas as dúvidas no rosto, a boca tentava dizer algo, sem sucesso. O outro se adiantou emulando calma:

— Se quiser continuar agora, senta na cama. Se quiser esperar um pouco, fica na cadeira, não vou demorar.

Misael olhou para o quarto, deu só dois passos relutantes para o lado e sentou no colchão.

— Bem, vamos lá — Antony puxou a cadeira, se acomodou ao contrário do usual e apoiou os braços no encosto — Você pode até perguntar alguma coisa, sem escândalo. Ouve bem antes de fazer qualquer pergunta idiota.

Misael só fez "sim" com a cabeça e seu locutor mexeu o pescoço para o lado, estalou e começou ainda se esforçando para manter a calma:

— Sou um vampiro da forma mais literal. Tenho mais de cem anos mesmo e não estou vivo. Enquanto alguns que nasceram comigo já partiram faz tempo, continuo aqui, falando, andando por aí e vendo toda essa merda de cidade se modificar mais um vez. Não sou o único, como você deve estar se perguntando. Existem outros, mais que esses que estão ali do lado — apontou para a porta — Já existiram muitos aqui, só faz uns anos que uma tragédia levou vários para o... Você acredita no inferno?

Misael deu de ombros sem mudar a expressão confusa. Antony seguiu:

— Não sei exatamente quantos foram, mas sei que muitos dos que eu via na cidade não vejo mais. Ou se esconderam bem, ou foram mortos.

— Mortos...

— Sim, podemos ser mortos, mas isso não é fácil. O que aconteceu foi algo extremo, e não só aqui, no mundo todo. Muitos membros...

— Membros...? — questionou mais ativamente.

— É uma forma mais tranquila de chamar, mas isso pouco importa. Importante você saber que existem outros membros espalhados pela cidade e pelo mundo, só que estamos na pior fase desde a Idade das Trevas. Talvez você nem saiba o que é isso.

Sob a noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora