2.3. Sinfonia da noite

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Trilha: Daniel Licht - Blood Theme

O carro percorreu a rodovia principal tempo suficiente para todos se acostumarem com o desconforto. O motorista não olhava mais para o sujeito no carona, colocou o braço fora do carro, dirigia com a mão no volante e a mesma passava a marcha. O sequestrador também olhava para frente como um robô. Misael relaxou, baixou a cabeça no apoio para a nuca e olhava para o céu e construções que passavam. Eles já tinham saído do Centro e pouco importava para ele agora. Ele ignorava totalmente a mulher sentada ao lado dele, de olhos fechados e mãos com hematomas.

— Vira aqui — falou o sujeito e o motorista só obedeceu.

Misael nem se mexeu. A apatia se justificava, talvez o cansaço da noite de balada que deveria terminar de outro jeito, talvez a droga que a mulher deu a ele, talvez carregar a um corpo. Por um momento ele pensou que foi merecido o que aconteceu com ela, se não tivesse feito isso, talvez estivesse viva. Ele fechou os olhos e afastou esse pensamento. Por mais desacreditado, pensar nisso não ajudaria em nada, ele próprio o julgou.

— Para mais ali na frente.

Misael notou que as construções imensas tinham desaparecido. Ele via o céu e árvores, muitas delas. Um verde escuro, galhos, copas de vários tipos. Se ajeitou no banco e olhou a rua recém asfaltada, mas nada além de árvores. Olhou para frente e os postes baixos iluminavam o suficiente para não haver uma acidente de um carro vindo na contramão. Era um corredor serpenteante ladeado por uma floresta, um bosque, qualquer coisa que Misael não sabia definir. O desespero retornou, aumentando enquanto o carro ia diminuindo a velocidade. Olhou de novo e só viu árvores e a escuridão entre elas. Se viu ali jogado.

O carro fez uma curva fechada. Ele não tinha ideia de onde estava. Pegou o celular e ele já nem acendia mais. Seu coração na boca, a mão inutilmente tentou abrir a porta mais uma vez. Travada. Ele viu uma lágrima escorrer do lado do rosto do motorista. Quando o carro finalmente terminou de fazer a curva, um terreno gramado apareceu e no meio dele uma casa de janelas distribuídas nos seus 3 andares. A construção larga e iluminada era uma caixa do século passado fincada naquele verde. O carro parou no portão prata da largura de dois carros.

— Ei, você... — o cara falou — Vai no interfone e diga que Antony está aqui para conversar.

Misael congelou. Ele se perguntou sobre a essa mansão, se perguntou onde estava, porque os dedos estavam formigando, como foi que chegou ali. A sequência fotográfica seguia como a luz estroboscópia desde a escolha da camisa nova, da saída de casa, do encontro com o amigo, chegada da boate, o encontro com a mulher...

— EI! VAI LOGO!

Tremeu. Misael abriu a porta e a empurro lento. Pisou fora, sentiu o asfalto como se pisasse em um pela primeira vez, sentiu o cheiro das árvores mais forte, olhou para trás do carro e viu a curva de onde veio, cogitou. O cara estava dentro do carro, no carona, porta fechada, até manobrar o carro e ir atrás ele já teria corrido bastante. Fechou a porta e testou as pernas dando uns passos no mesmo lugar. Conseguiria correr? Não tinha certeza, mas só saberia se tentasse. Qual seria a chance de sair vivo se corresse depois de ser testemunha de um crime num quarto de motel? Qual seria a chance de não ser acusado como cúmplice? Será que foi ele mesmo que fez aquilo com a mulher enquanto estava drogado? Balançou de novo a cabeça.

— Porra! Vai logo! — o cara gritou e fez Misael tremer de novo e andar para o portão ao invés do sentido oposto.

Misael continuava com a voz ríspida na cabeça, por que você não está correndo? Os pés iam devagar até o portão. Você vai morrer aqui. Foi sequestrado. Abriu a caixinha de acrílico que protegia o botão. Se vira e corre. Ele não vai conseguir te pegar, o motorista está desesperado. Só você se esconder no mato. Tocou o interfone. A primeira pessoa que você ver já pede ajuda. Ele nem está armado, você viu alguma arma com ele?

— Pronto — disse a voz do outro lado.

Faz isso e corre quando ele achar que está tudo bem.

— É... Antony quer conversar. Não sou o Antony, ele me mandou... Me pediu pra falar isso. Ele está aqui. No carro e quer conversar.

Se prepara.

— Só um instante — disse o homem do outro lado e desligou.

Misael apoiou firme o calcanhar no chão, girando o corpo no seu eixo e visualizando o que tinha nas suas costas. O motorista olhando pra frente e o carona, o tal Antony, com os olhos fixos nele. Foram dois longos segundos onde tudo aconteceu. O motorista tinha a testa banhada de suor, Misael flexionou os joelhos e jogou o peso para frente. O tal Antony ergueu a mão e algo cromado brilhante refletiu a luz das luminárias do portão. O brilho fazia um rastro esfumaçado de luz, uma linha de miríades terminava numa navalha em L entre seus dedos. Os olhos do sujeito eram de um azul fanático, incoerente com a anatomia, antes não estavam ali. Eram psicóticos como dois anéis de neon.

Corre!

Misael encheu o peito. Encarou aqueles olhos cianos.

— Não consigo — se curvou e colocou as mãos no joelho como se aliviasse de uma maratona. O ar saiu tão farto que seu peito ardeu.

— Pode entrar — falou a voz no interfone. Um estalo e o portão começou a se mover.

Antony o olhava e exigia que entrasse no carro. Misael não ouviu a voz dele, foram os olhos, apenas os olhos.

Como um autômato ele se ergueu, caminhou, abriua porta do banco de trás e se acomodou.

* * *

Trilha: Beethoven - Moonlight Sonata (1º movimento)

O botão que liberava o portão tinha um formato abaloado, num vermelho que destoava do resto da pintura da parede, da tapeçaria, dos móveis de madeira e dos lustres e luminárias. Era um ponto incongruente na sala de leitura do segundo andar. Mesmo depois de muitos pedidos para a troca, a empresa de segurança disse que eram as normas e o maldito botão continuava profanando a perfeição dos tons e das texturas, como uma mancha de vinho numa toalha de seda, uma ferida num rosto angelical, um tumor num corpo saudável. Aldeban respirava sempre em desacordo quanto precisava apertar o botão. Não foi diferente esta noite.

Ele cruzou a sala e fechou a porta dupla de madeira nas suas costas. Percorreu o corredor e ajeitou a gravata, puxou o terno um pouco para baixo e conferiu as chaves no bolso direito. Passou por quatro portas de madeira escura e virou na quinta. O som do piano preenchia o lugar. A porta já estava aberta, mas ele estacionou no portal de mais de dois metros e meio e aguardou.

O piano era um brilhante Steinway Macassar Ebony, recém adquirido, substituindo o anterior — perdido num infeliz acidente. Seu som era nitidamente requintado e pulsante. Vibrava não só os tímpanos, vibrava os poros, as nuances dos olhos, a camada invisível que temos acima da pele que nos permite sentir sem ao menos tocar. Aldeban aguardou.

As mãos brancas e delicadas que tocavam não pareciam se importar com a melancólica sinfonia, tocavam com paixão. Os dedos, quase tão alvos que se camuflavam sobre as teclas, subiam e desciam nas oitavas como se o mundo pudesse esperar o movimento terminar.

A pianista parou. Ainda olhando para baixo ajeitou o cabelo para trás do ombro, fechou a tampa sobre as teclas e sussurrou:

— Perfeito — um sorriso pequeno e satisfeito surgiu nos finos lábios — Fale, meu querido Aldeban.

— Desculpe atrapalhar a sonata, minha senhora, mas Antony está passando pelo jardim neste momento, peço que aguarde para que a senhora conclua?

— Não. Teria que começar de novo... — as unhas de pérola acariciavam a tampa do piano — Me estenderia demais e possivelmente perderia o interesse em vê-lo. Vou descer. Acomode-o na sala do térreo.

— Ele está com dois outros.

A mulher parou o carinho e afastou os dedos num único e seco movimento. Virou o rosto para o mordomo e sorriu:

— Não há problema. Não é a primeira vez que Antony traz o jantar.

Sob a noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora