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Meu pai aplaudiu da porta, aplausos ocos pelas mãos fortes, sorrisos verdadeiros me mandavam energias boas, e Eduarda gritava como louca balançando dona Marta que quase chorava, a pequena Sophia apenas observava tudo sem entender nada, e o cachorro ainda cheirava o asfalto quente.

- eu seria capaz de te carregar no colo.-

- eu sugiro que não faça isso- sorri.

- sorvete?-

- sorvete.-

É, as coisas na minha vida eram inconstantes, tudo sempre mudava.

Eu pensei que não sentiria tanta falta de Roni, ele não era tão presente assim na minha vida, mas no final, eu acabei sofrendo mais por ele do que meu pai, eu devo a Roni 65 reais mas ele me deve um segredo, um segredo que ficou de me contar no carro antes de morrer, eu me lembro bem disso, pois a cada momento eu remoia aquela cena, seus olhos tranquilos e medrosos me implorando para que eu o deixasse ir.
Eu não me perguntava tanto oque ele tinha pra me dizer, mas lá no fundo, bem lá no fundo eu queria saber, ou apenas ter mais alguns minutos com ele e dizer o quanto eu o amava.

- eu sei que é cedo, mas você precisa saber disso antes que descubra por si só, e ache que estava sendo enganado- Henrique soltou do nada enquanto tomávamos nosso sorvete sentados na porta da sorveteria, onde haviam algumas mesas e toldos nos protegendo do sol.

- é melhor você falar logo-

- em casa, é melhor conversamos eu seu pai e minha mãe-

Tá, aquilo já estava me deixando com medo, não era o momento de mais bombas caírem no meu colo, até porque eu ainda estava meio aleijado né mores.

- por que sua mãe?- perguntei.

- você vai saber assim que conversarmos, só peço que não fique puto ou chateado-

Meu coração palpitou, e minha cabeça entrou em brasa, um pavor tomou conta de mim e automaticamente eu estava lá de novo, dentro do carro segurando as mãos do meu irmão.

- Cã?- Henrique já estava ajoelhado a minha frente me segurando pelos joelhos.

- eu tô bem-

- quer ir pra casa?-

- acho melhor irmos mesmo-

Henrique não mudou muita coisa nesses meses, mas acho que tem algo diferente nas suas palhaçadas e nas histórias engraçadas que ele insiste em repetir pra mim, talvez tenha a ver com o acontecido no acampamento, com  Lucas e a gente, se parar pra pensar eu sofri pra caralho, mas sempre tem alguém pior que a gente, numa cadeira de rodas ou sei lá, não, pera? Eu estava numa cadeira de rodas né? Mas continuando...Ele estava diferente, não um diferente ruim ou bom, só diferente.

- você mudou nesses meses - falei ainda olhando para frente.

- estou deixando o bigode crescer- sorriu.

- não estou falando disso, você parece mais maduro-

- ou você parece uma criança dessa altura.-

- não zombe de um deficiente- rimos.

Estávamos todos na sala, menos Eduarda e Sophia, já que não faziam parte da tão bombástica notícia.

- fala ué, vão ficar ai parados olhando pra mim?- ri.

- bom, é que é meio estranho e desconfortável oque vamos falar pra você- Marta foi a primeira a abrir a boca, falando como se defendesse na frente de um juiz.

- podem falar, sério-

Eles não disseram nada, Marta e meu pau apenas se olharam e seguraram um a mão do outro, e eu acabei entendo no fim e descobrindo oque Roni queria me falar antes de morrer.

- isso é estranho e talvez nojento, meu pai namora a mãe do meu namorado, parece que eu sou o Otis de Sex Education, mas espero que sejam felizes, só fico triste que acham que eu sou uma pessoa tão horrível que não aceitaria o relacionamento de vocês-

- só ficamos com medo de você pensar que eu estou tomando o lugar da sua mãe- disse Marta.

- você não está tomando o lugar da minha mãe, minha mãe está morta e ela não tem mais lugar aqui desde que morreu e pai, o senhor tem que se permitir a viver e a ser feliz sem pensar em mim, sua felicidade não pode depender da minha, somos pai e filho mas somos pessoas diferentes, eu não vou ficar aqui para sempre e o senhor precisa de alguém, não pra cuidar porque mulher nenhuma é empregada de macho, mas pra amar e ter cumplicidade, só acho que isso vai ser difícil pra Sophia- olhei para Marta.

- sim, nós vamos com calma- ela disse.

- e sua comida é ótima- disse revelando que já sabia que ela estava cozinhando pra nós.

Batidas pesadas na porta atrapalharam nosso fim de conversa e Henrique foi abrir a porta, já estava anoitecendo.

- você?! - assim que Henrique disse meu pai se levantou e foi até a porta também, Henrique estava quase pulando encima do indivíduo. Era Lucas.

Empurrei minha cadeira até a porta e o encarei friamente, as lembranças sobre ele não me atingiam mais, tinha coisa mais importantes pra sofrer do que isso. Ele estava horrível, três pontos na sobrancelha, olho roxo e olheiras enormes, o carro do sei pai estava do outro lado de rua e o mesmo estava ao lado de Lucas na minha porta.

- meu Deus, oque aconteceu com você? E oque está fazendo aqui?- perguntei.

-foi o seu pai- Henrique disse com a voz satisfeita.- ele ficou possesso quando soube oque ele fez com você-

-fala seu moleque- seu pai rosnou dando um beliscão sobre a camisa do garoto.

- eu vim pra te pedir desculpas, e dizer que sinto muito pelo que fiz com você e pelo que aconteceu com seu irmão.- ele estendeu a mão como um cumprimento e como forma de paz talvez, ele não conseguia me olhar nos olhos e parecia envergonhado de ser quem ele é.

- olha aqui garoto...- meu pai foi pra cima dele e eu o segurei com dificuldade.

- não, isso não vai apagar oque ele fez, ele vai aprender com a vida, e pelo visto já deve estar aprendendo- falei.

- você me perdoa?- ele ainda não me olhava nos olhos.

- olha, eu não posso perdoar você, só Deus pode, e eu espero muito que você possa vencer na vida e mudar suas atitudes e seus pensamentos sobre muitas coisas, sobre como tratar uma mulher, seja ela sua namorada ou não, como tratar um amigo ou um desconhecido, você vai aprender, e não vai aprender com meu perdão e nem com os socos do meu pai ou do meu namorado, mas vai aprender. E pega essa sua mãosinha de babaca e enfia no meio do seu cú, seu idiota escroto- cuspi, literalmente, cuspi no tênis do garoto e fechei a porta me sentindo leve e livre de mais um problema.

Tudo ficou de boa por uns dias mas eu ainda precisava me resolver com Alice e iria na casa dela assim que voltasse a andar daqui três dias, sem cadeira e sem muletas, eu iria na porta da casa dela e diria tudo que eu estou sentindo, na verdade eu fui.

- Tá eu vou tirar!- Alice gritou com a mãe que reclamava da toalha e abriu a porta me encarando assustada.

- oi- foi só oque eu disse.

- oque você...- a interrompi.

- não fala nada, eu sofri um acidente grave de carro e fiquei aleijado por um tempo, nesse acidente eu perdi meu irmão e parte da minha vontade de viver se foi com ele, eu sei que nossa briga foi coisa de momento e que você não vai deixar que as coisas fiquem estranhas pra sempre ou quando eu voltar pra escola, espero que nossa amizade não tenha acabado e que eu ainda seja Cã pra você, e que você seja Ali pra mim-

- pra você, eu sempre vou a Ali- eu sei foi clichê, mas oque você leitor queria? As vezez até na vida real momentos chichês acontecem, ainda mais quando as coisas estão se resolvendo e estamos chegando ao final da minha bela e trágica história, é a vida.
Lembra quando eu disse no começo de tudo que algumas coisas ruins na vida são como os espaços depois da vírgula?
Bom a escola também é, e eu tenho que voltar pra lá.

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