Xavier

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– Só acene e sorria.

Olho para Suz com a melhor cara de tédio misturado com raiva e frustração. Odeio estar aqui onde todas essas pessoas que não me interessam nem um pouco, nem o que elas fazem e muito menos a ligação que tem com o meu pai. Sei que todos são envolvidos com política, empresários podres de ricos ou milicianos. Por mim, todos estariam atrás das grades.

– Você deveria estar feliz por ele só ter nos trago aqui, não impedido de fazer algo que gosta.

– Suz, cala a boquinha. Por que acha que ele nos trouxe para essa merda de lugar com toda essa gente? Resposta correta se pensou que é porque odeio tudo o que ele gosta.

Não há outra explicação para o Alessandro nos trazer aqui. Uma festa onde tem bebida por todo lado? Fala sério. É esse seu jogo; ele quer me deixar o mais desconfortável possível, quer me ver cair só para ter outra desculpa quando estiver agindo como um babaca comigo.

– Acha que é isso mesmo? – diz Suz pensativa. Como ela não consegue ver? – Eu não acho que papai seria capaz de fazer algo assim. Você está criando teorias sem sentido em sua cabeça.

– Suz se liga. Olhe ao seu redor – eu gesticulo ao redor. – Uma sala enorme cheia de adultos tomando drinques, conversando sobre assuntos que nós não nos interessamos e vindo nos cumprimentar com ar de receptivos cobrindo o sentimento de dó que sentem da gente.

Ela passeia o olhar pelo ambiente e depois para as flores no jarro no centro de nossa mesa. Queria ficar com raiva dela, mas não consigo. Todos os dias Suz é decepcionada pela pessoa que mais admira e eu sou o responsável por ela sentir esse sentimento, porque sou eu quem limpa a nuvem diante de seus olhos quando ela está olhando para ele.

– Pare de falar essas coisas – murmura baixinho.

– Sinto muito, mas ele não é o mesmo de antes – suspiro. – E não vai voltar a ser.

– Tudo o que você fala sobre o nosso pai... parece que você o odeia. Fica pintando uma imagem completamente diferente do que ele é. Como se fosse outra pessoa.

– Mas é exatamente isso que acho – tomo um gole de suco e forço um sorriso para uma desconhecida que acena em minha direção. – Ele se tornou outro depois do acidente. Nosso pai de verdade, o antigo, jamais nos obrigaria a vir em um jantar desses. Ele não nos envolvia em seus negócios.

– Cale-se, por favor – ela me encara. – Estamos aqui por sua causa, então não piore as coisas. Apenas acene e sorria.

Quero revidar, só que não o faço. Desvio o olhar de Suz e não digo mais nada a noite inteira. Os únicos que tem minha atenção são aqueles que me cumprimentam de longe ou se aproximam para fazê-lo, enquanto meu pai está ausente da mesa. Fico de cara fechada para minha irmã, porque simplesmente não consigo aceitar que ela não veja o que consigo enxergar. Para mim é tão óbvio quanto a água é cristalina. Mas Suz segue com a névoa diante de seus olhos mesmo que eu a dissipe de vez em quando.

Para mim toda essa situação se torna ainda mais irritante pelo fato de Alessandro ter nos trago apenas para nos deixar aqui sozinhos. Ele saiu da nossa mesa faz tempo e está de pé em um círculo formado por caras com os botões de suas camisas quase estufando por causa da enorme barriga. Até posso imaginar quais seus assuntos favoritos – dinheiro, mulheres gostosas e mais dinheiro. É inevitável que eu sinta náuseas aqui.

– Onde você vai? – Suz pergunta meio apavorada quando me levanto.

– Preciso de ar puro – digo.

É um restaurante nobre de São Paulo e foi todo reservado para as pessoas que estão aqui hoje. Gente da alta sociedade que se reúne uma vez por mês para fins supostamente lucrativos que, outra vez supostamente, serão doados às comunidades carentes. Realmente acham que alguém acredita neles? Tem quem acredite?

Respiro fundo quando chego à rua. Parece que meus pulmões não recebiam uma boa onda de ar havia tempos, e sinto uma leve tontura. Meu subconsciente pede um cigarro, assim como todo o meu corpo, mas não posso vacilar e ser pego por meu pai fumando. Concentro minha mente em qualquer outra coisa, apenas para não deixá-la agir por conta própria e atravesso a rua, indo para longe daquele lugar, embora saiba que isso vai ser motivo para outra bronca.

Apenas preciso ir a qualquer lugar que não seja aquele restaurante. Ando rua acima sem destino exato, chutando pedrinhas na calçada e com as mãos nos bolsos. Há dois cigarros em meu bolso esquerdo, então fico entrelaçando meus neles só para diminuir a ansiedade. Como está garoando, até que eu decida voltar já estarei ensopado, contudo não me preocupo.

Estou tão longe agora que quase não consigo ver a fachada do restaurante. Fico um momento parado enquanto decido se volto ou continuo seguindo em frente, com um pouco de receio com as consequências que haverão se eu não retornar. Olho para o café a poucos metros e decido entrar, mas antes que o faça sou abordado por um grupo de meninas. Elas me pedem para tirar selfies e gravar vídeos. Me esforço para meu sorriso parecer verdadeiro. Quando me livros delas, resolvo não entrar no café, porque com certeza vai surgir mais alguém querendo tirar fotos e hoje não é um bom dia para isso.

– Xavier?

Reviro os olhos incrédulo com quem vejo a minha frente.

– Oi – cumprimento.

Israel está com uma garota, sua namorada suponho.

– Não achei que você fosse o tipo que tomasse café – diz com um tom amigável, mas não lembro de sermos amigos.

– Pois é.

A menina cochicha algo em seu ouvido e ele assente, em seguida ela passa por mim com um sorrisinho e entra no café. Ele tem um ótimo gosto.

– Está tudo bem com você? – pergunta e inicialmente não entendo, então ele completa: – Foi mal por tê-lo deixado sozinho naquele estado.

– Ok. Eu sei me cuidar – dou de ombros.

Israel dá um sorrisinho, mais para ele do que para mim. Não lembro muito bem o que aconteceu na noite passada, mas recordo de ter dito umas merdas para ele, como sempre.

– Desculpa pelo que falei – minha voz sai um pouco baixa demais, talvez seja porque não esperava falar aquilo.

Por um segundo a expressão no olhar dele sugere que ficou surpreso ao ouvir um pedido de desculpas vindo de mim. Fico como ele, sem saber como reagir.

– Acontece – finalmente fala. – Hm, eu tenho que ir agora.

– Tudo bem – respondo de cenho franzido.

Israel retribui com um sorriso e entra no café, retornando para sua namorada. E eu volto para o restaurante imaginando o quão linda ela é, e me questionando há quanto tempo eles namoram. E se amam um ao outro de verdade.

Não me lembro de ter voltado a pensar em cigarro ou bebida o resto da noite. Minha mente estava indo em várias direções, seguindo caminhos que eu não havia cogitado andar. Subindo e descendo montanhas-russa em grande velocidade, sempre levando a um único ponto – que eu não entendia e nem gostava. Minha barriga estava gelada quando me deitei em minha cama, meus punhos cerrados e uma raiva irracional de Israel porque ele estava namorando aquela menina linda. Linda para caramba.

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