Capítulo 3: Aquela conversa

4 0 0
                                    

O aroma do café já tomava conta de toda a extensão do apartamento. Sam, na cozinha, preparava a bebida enquanto Harry analisava da varanda a rua vazia, digerindo a informação do telejornal. Era aterrorizante, e a angústia que sentia, imensurável. Agradeceu por ter Sam ao seu lado naquele momento pois, melancólico que estava, somando a isso as recentes manchetes, não sabia como passaria por isso sozinho. Talvez tenha sido o destino que fez com que Sam viesse até a sua casa momentos antes do decreto a respeito da intensificação da rigidez da quarentena, para que passassem os próximos dias juntos e acertassem qualquer pendência que pudesse ter sobrado dos acontecimentos recentes.

Sam foi até a varanda levando consigo duas xícaras, uma verde musgo e a outra amarela viva, cheias de café. Tinham intimidade suficiente para que Sam soubesse que a xícara amarela era a favorita de Harry. Sam propôs um brinde levantando o braço e apoiando seu corpo na grade da varanda, e após um longo gole da bebida quente, que cumpria bem seu papel de amenizar o frio que fazia naquele dia nublado. Harry deixou-se cair no puff vermelho rubro que preenchia o espaço da varanda, e fitou Sam de baixo para cima. Seu olhar não o deixava mentir o amor que sentia, mas o amor tem seus ônus e bônus, e se quisesse que ficasse tudo bem entre os dois, era necessário ter uma conversa séria. Harry começou:

-Sam, pegue uma cadeira.

Sam assentiu, receoso de contrariá-lo e voltar a despertar a ira que tinha se manifestado há algumas horas, e arrastou da sala de jantar uma cadeira de formato meia-lua na cor cinza chumbo, na qual o assento acolchoado se escondia pelo formato oval avantajado do móvel.

-Eu detesto brigar com você, mas você não me deu outra saída. Está na hora de conversarmos como duas pessoas adultas, e se você quiser tanto quanto eu que esse relacionamento dure, isso não pode se repetir nunca mais, tudo bem?

Sam se surpreendeu com a maturidade de Harry para tratar do assunto.

-Eu sei. E se eu pudesse voltar no tempo eu com certeza faria isso. Mas só me resta assumir o meu erro e pedir o seu perdão.

-E eu te perdoo. Mas também quero entender por que você fez o que fez. Eu não sou suficiente para você?

-É claro que é, Harry. Eu não sei o que deu em mim.

-Não me enrole, ninguém trai outra pessoa sem um motivo.

Trazer a tona a traição era como levar uma facada no coração para Harry, mas precisava encarar de frente o que Sam fez.

-Eu acho que - começou Sam - eu me sentia muito pressionado. Eu sempre tomo as iniciativas, e às vezes tudo o que eu quero é receber uma surpresa também. Um relacionamento é uma via de duas mãos, mas eu sentia como se eu me esforçasse muito mais. E com o Anthony...

Harry, interrompeu-o:

-Não toque mais nesse nome, por favor.

-Eu sentia a reciprocidade com mais facilidade - finalizou Sam.

-Nós temos maneiras muito diferentes de demonstrar o amor, mas não significa que eu te ame menos.

-Eu sei disso agora. Me desculpe, Harry. Do fundo do meu coração.

Harry levantou-se e sentou-se no colo de Sam, abraçando-o e acariciando seu ralo cabelo.

-Vamos entrar - disse Harry - temos que manter as janelas fechadas, lembra?

Assim que entraram no apartamento, Harry foi até o banheiro para tomar um banho, deixando Sam à vontade na casa. Sam aproveitou a oportunidade para abrir uma garrafa de vinho e acender algumas velas, o sol já se punha e a escuridão ajudava a aumentar o clima romântico.

Assim que Harry saiu do banho, vestindo seu pijama, que nada mais era do que uma calça de moletom e uma camiseta que Sam tinha esquecido em sua casa há muito tempo, se deparou com a surpresa preparada pelo namorado, e teve certeza de que não poderiam estar melhor. Era inevitável que estivessem juntos, já que as ruas estavam bloqueadas, mas Harry não poderia querer uma companhia melhor. Se abraçaram e Sam disse em voz alta:

-Alexa, toque nossa playlist de um ano de namoro.

Imediatamente, a música "Lover" começou a tocar, e o casal dançou absorvendo a mensagem da letra, seus corpos colados e deixando-se levar pela atmosfera criada, levando-os a se envolver em um beijo lento e envolto em emoção.

Ainda ao som da mesma playlist, sentaram-se no chão da sala de estar e começaram a ligar para todos os seus amigos por chamada de vídeo. Primeiro, ligaram para Nancy, uma de suas maiores amigas, com seus 23 anos e cursando psicologia. Nancy era uma garota negra de cabelos cacheados vastos e muito esbelta, usava uma blusa felpuda com listras brancas e pretas e o restante de suas roupas estavam ocultas por um cobertor. Suas aulas tinham sido canceladas e passava sua quarentena com a companhia apenas de seu gato, carinhosamente nomeado como Cookie. Conversaram por aproximadamente uma hora sobre assuntos diversos, principalmente a divulgação do alerta vermelho do governo, mas a garota teve que sair da ligação para se dedicar aos estudos, que continuavam, mesmo à distância.

Harry repousava sua cabeça sobre o ombro de Sam quando ligaram para Martin, um de seus amigos que passava a quarentena com a mãe e a irmã, e este comentou que teria se aproximado muito mais da família nestes últimos dias. Usava um gorro azul e uma blusa branca com inscrições em preto, com apenas parte do cabelo loiro encaracolado a mostra, e passaram pouco mais de 30 minutos conversando.

Por último, ligaram para Eileen, uma amiga que tinham conhecido há pouco tempo, mas pela qual já nutriam sincera admiração. Eileen era asiática e sentia na pele como o surgimento do vírus causador da pandemia foi um fator decisivo para revelar um racismo para com pessoas dessa descendência, até então velado, uma vez que o vírus teve sua origem em países asiáticos. Apesar disso, estava feliz e cumprindo sua carga horária de trabalho em casa, na companhia do namorado e do cãozinho que tinham adotado de um abrigo.

Durante essa ligação, feita do celular de Sam, uma notificação apareceu na tela, com o nome de Anthony, e a mensagem que enviara terminava com uma sequência de corações, despertando em Harry tudo o que aparentemente tinha esquecido, ao se dar conta de que o namorado ainda mantinha contato com o terceiro elemento.

Harry correu para o quarto e se trancou novamente, deixando Sam sozinho com Eileen, confusa em relação ao ocorrido. Sam se despediu sem prestar explicações e correu para o quarto de Harry, mas dessa vez este não cedeu, e Sam acabou por passar a noite dormindo no sofá da sala de estar.

InevitávelOnde histórias criam vida. Descubra agora