O prédio era tão alto, que lá de cima era possível ver toda a cidade. Aquele seria o melhor lugar – depois da carroceria da caminhonete – para pensar na vida.
Lembro-me do quanto minhas mãos tremiam por ter escapado depressa daquele outro prédio. Eu era muito inseguro. Foi difícil entender o porquê de tanto nervosismo, eu só tinha me deparado com uma garota! Em minha mente, passavam-se ideias sobre possíveis reencontros com aquela jovem, mas eu sabia que voar para aquele lugar novamente seria um erro. Se a cidade soubesse quem eu era, com certeza eu teria que voltar ao meu passado e confrontar tudo o que havia deixado para trás.
Prometi para mim mesmo que não voltaria lá.
Certamente era uma promessa que eu não cumpriria.
Voar não me fazia mal, não mais. Parecia que meu corpo já tinha se acostumado com tal esforço. A rigidez necessária para me guiar no céu era tão grande que me deixava exausto e com o corpo doendo, mas era difícil me importar. Qualquer um ignoraria esses fatores. Eu tinha em mente que um dia me acostumaria, e foi o que aconteceu com o passar do tempo.
Perto da quina de uma das bordas do prédio, havia um binóculo que era acionado por moedas. Eu ainda tinha aquelas moedas no bolso, o que era uma sorte enorme. Apanhei uma de cinquenta centavos, pus na máquina e olhei naquelas lentes frias.
A vista era linda, mas aquilo não me satisfez. Voar pela cidade me proporcionava uma visão muito melhor, com toda a certeza.
As lentes se fecharam com um clique alto, o tempo de apreciar o horizonte pelo binóculo se esgotou. O de ficar naquele prédio também.
Voltar para casa naquela noite ainda era uma dúvida. Eu queria estar lá quando Frank acordasse para servir o café e cuidar do Phill. Talvez ajudá-lo a caçar depois de fazer todas as obrigações do lar. Eu precisava da minha rotina. Estar fora da fazenda era como perder tudo o que me resgatara da insanidade.
Mesmo com aquele jeito durão, Frank teve um papel crucial em minha criação e eu era grato demais por isso. Eu não queria abandonar Frank.
Dei uma última conferida no Golden State antes de sair voando dali. A garota, o possível zelador, o prédio dourado e aquela noite tiveram um papel importante em toda a minha trajetória de vida.
Um enorme passo foi dado naquela noite.
Subi novamente na borda do prédio, flexionei os joelhos e voei. O frio adormecia um pouco o desconforto corporal. Meu cabelo estava úmido e meus braços arrepiados pareciam pedras de gelo em consequência do vento frio que vinha de encontro ao meu corpo.
Eu não tinha mais para onde ir.
A fazenda era o único lugar que eu conhecia. Naquele tempo, eu não tinha amigo algum. Se existisse um lugar para ficar, mesmo que fosse o interior de um carro abandonado eu com certeza me esconderia.
Foi o que eu fiz, de uma forma ou de outra.
Instintivamente, voei na direção de casa. Não era tão difícil assim me orientar pelo céu, ainda mais tratando-se de Gray Town. Seus prédios eram tão icônicos que qualquer um se guiaria com facilidade se voasse por lá. Eu queria voltar para casa, mesmo que fosse apenas para olhá-la de longe.
Aquele lamento ao pousar na fazenda foi o primeiro de muitos. Não por estar lá contra a vontade de Frank, mas por não estar mais voando. No céu, mesmo que por poucos minutos, todo o meu sofrimento desaparecia. Voar estava se tornando uma fuga para mim. Eu abandonava minha vida por poucos minutos e estava amando aquilo.
O tênis se sujou de lama novamente. A fazenda estava com poucas luzes acesas. O andar de baixo estava totalmente apagado, o que só acontecia quando todos estavam em casa.
Sabe quando se é criança e o plano de fugir de casa parece a melhor opção? A impressão que uma criança tem é que quando for encontrada, seus pais a abraçarão com um aconchego saudoso e farão todas as suas vontades para que a mesma não fuja mais. Por puro capricho, a criança fugiria na próxima vez que seus pais a negassem.
Eu podia fugir e nunca mais voltar. Frank talvez me encontrasse por entre as árvores e uns anos depois em algum bar da cidade.
Mas aquele não seria Frank. Ele não ia a bares.
Aquele não seria eu. Eu não fugiria mais.
Olhei fixamente para a janela de Frank por quase meia hora. Ele devia estar dormindo. Eu queria contar tudo para ele, desde o meu nascimento até o tombo que me levou à escada de incêndio daquela garota, mas ele não entenderia. Era velho e quadrado demais para aceitar alguém como eu ao seu lado.
A caminhonete estava ali, como sempre. Se eu fosse usá-la, não teria a mínima certeza de que ela funcionaria. Porém, ela não precisava dar a partida para ser uma boa cama naquela noite. Meus dedos frios tocaram o ferro mais frio ainda da maçaneta, aquela lata enferrujada estava aberta. Por dentro, seus bancos não eram tão surrados. Até eram confortáveis por serem de couro e molas. O teto interior estava totalmente descascado, assim como as paredes de couro na parte que colocamos os pés.
E mesmo com isso tudo eu ainda a amava.
Eu precisava dormir. Aquele dia precisava acabar e dormir ali dentro era melhor do que repousar na varanda. E como o sol que vinha toda a manhã e a lua que chegava no anoitecer, meus olhos se fecharam com todo o peso do mundo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
CAPUZ XADREZ (Saga Chess Hoodie)
General FictionViu sua irmã morrer queimada aos dez anos. Sobreviveu à queda de um penhasco sem maiores explicações. Não há idade certa para conhecer a dor, e a dele veio cedo demais. Seis anos depois, vivendo longe de casa, Elliot é mais uma vez confrontado por t...