Contos da Quarentena2 AMAZON

A Garota e a Idosa I

                   Sobre Ontem

— Ontem eu acordei idosa. Assim, do nada.
— Se sinto algo diferente? Não! Exceto a dor no joelho e uns quantos quilos a mais. De resto está tudo igual!
— Dê-me um exemplo!
— Um exemplo? Bom, eu ainda olho para as pessoas e as comparo com bichos. Tem moças que parecem seus próprios cachorros, tem homens que se parecem com tartarugas, tem jovens que parecem garças, pois são esguios e bonitos. E muitas senhoras se parecem com gatos.
— Ah, mas isso não quer dizer muita coisa.
— Quero algo mais concreto.
— Concreto, concreto? Vamos ver... eu "me obrigo" a ser cuidadosa com o que falo, porque se eu falasse tudo o que penso, eu não seria chamada de engraçadinha ou danadinha, eu seria tachada de mal-educada, faladeira e atrevida.
— Você está me enrolando... isso é o normal desde que a gente se entende por gente. Chama-se "filtrar" o que se fala.
— Nossa, desse jeito agora mesmo que vou envelhecer mais, com essa sua desconfiança. Voce não acredita em nada!
— Não é isso. É que eu preciso de prova mesmo.
— Está bom. Eu vou falando várias coisas e depois voce me diz, se acredita ou não que foi assim, de ontem para hoje que fiquei idosa.
— Ok! Combinado.
— Eu como escondido. Por exemplo, na hora do almoço, já não estou com tanta fome, o preparo, o cheiro, na verdade o que é obrigatório me tira um pouco a fome. Almoço pouco. E passados uma hora mais ou menos, aí vou na geladeira e "roubo"alguma coisa do almoço e como escondido, frio mesmo.
— Eu finjo que estou dormindo só para não conversar. Eu não atendo o telefone, se sei que a conversa vai ser longa ou chata.
— Como é uma conversa chata? — pergunta a garota
— Ah é quando só a pessoa fala. Não é uma conversa. É um monólogo. A pessoa só quer despejar em você a mesma história de sempre. Ela não quer ouvir, nem mudar nada do que pensa. Ela quer seu ouvido velho para uma história eterna! Quando voce crescer vai reconhecer logo ao  encontrar alguém assim.
A garota nem soube o que responder.
Bom, continuando, diz a idosa
— Eu prefiro doce a salgados e gosto mais de crianças que de adultos. Eu adoro ficar só eu e meu gato emprestado. Eu faço exercícios só para não me encherem o saco. Eu acho que árvores jovens são esguias e altas e árvores idosas são enrugadas e grossas, por isso não adianta fazer regime. Como as árvores, com a idade você vai engrossar.
— Está bom assim ou você quer mais? — Posso te falar, por exemplo, que eu não acredito nos espelhos. Que adoraria tomar banho de chuva se não fosse o problemão que eu teria. Que, de verdade, não há nenhuma diferença entre o que eu pensava no século passado e o que eu penso neste século.
— Então foi assim. Ontem eu era criança e de repente hoje idosa! Não estou entendendo!
— Chega, diz a menina que mora em mim, vá dormir que hoje você está uma velhinha cheia de graça!
— Ah tá, obrigada! Fui! Ou melhor, vamos, diz a idosa.
Vocês sabem não é? Onde está uma está a outra. Foi uma escolha consciente que a idosa fez. Mas essa será outra história!