Na visão de Cristiane tudo estava embaçado. Seus olhos verdes captavam uma sala um pouco escura, mas completamente desfocada. Tentou se levantar, mas sentiu seu corpo dormente. Milhares de vozes estavam em sua mente, falando ao mesmo tempo em que ela não conseguia distinguir o que era. Olhou para o teto e viu um orifício circular de metal escuro com uma lança no seu meio. Não conseguiu distinguir aquela figura.
Sentiu algo pressionar sua face e tudo ficou mais embaçado ainda. Fechou os olhos e quando os abriu sentiu a vista ser invadida por uma forte luz solar. Demorou alguns segundos para a visão se acostumar com a luz e então viu uma rachadura de vidro, coberta de sangue.
Tentou se virar, mas uma mão a impediu. Na sua frente um carro estava todo destruído. Escutou o dono da mão pedindo que ela não se mexesse. Seus olhos foram para baixo e avistou seu celular caído sobre seus pés e então tudo em sua mente veio à tona como um tapa na cara. Estava mandando mensagem e sofreu um acidente de carro.
Foi fechando os olhos quando a mão a pressionou mais uma vez. Pedia que permanecesse acordada. Ela teve vontade de dizer que sabia do procedimento, que também era médica, mas da sua boca não saiu som algum. Sentiu gosto de sangue na boca. Não demorou muito para que a porta do seu carro fosse retirada.
Um colar cervical foi posto em seu pescoço. Uma maca aproximou-se do carro. Um dos socorristas vinha a todo o momento enfiar a luz de uma lanterna em seu olho. Precisou de mais três socorristas para tirá-la em segurança de dentro do carro. Acreditava que não havia quebrado nada. Não tinha dor. Sofrera apenas uma pancada na cabeça. Mas não conseguia explicar aquilo para os outros. Não conseguia emitir um único som. A maca entrou na ambulância. Sentiu alguém segurar firme sua mão e dizer que tudo ficaria bem. Quem era aquele? Como ele pode garantir com tanta certeza que tudo ficaria bem? E se sobrevivesse, seus sonhos sumiriam? Caso contrário nada estaria bem.
Chegaram ao hospital e o médico de plantão foi solicitando inúmeros raios-X. O medico mandou levarem ela do raio-X direto para a sala de cirurgia. Imaginou que tivesse fraturado alguma costela e perfurado algum órgão interior, isso explicaria o gosto de sangue na sua boca. Mas por que não sentia dor? Nunca estiveram numa sala de cirurgia como paciente. Entraram médicos, enfermeiros, todos de verdes, com toucas e máscaras. As luzes foram ligadas em cima dela. Sentiu uma técnica cortar seu vestido, logo depois uma picada forte no seu braço e um liquido quente entrar na sua veia. Olhou vagarosamente para o lado e viu a cara do anestesista com quem já trabalhou em outros momentos. Estavam colocando-a para dormir, levando-a para o mundo de seus pesadelos de novo. Quanto tempo ela ficaria desacordada? Quanto tempo levaria aquela cirurgia? Tempo suficiente para ela morrer no seu sonho? Não queria dormir, não mais. Uma angustia tomou conta de todo o seu corpo. Tentou se levantar, se mexeu, estremeceu na maca. Sentiu mãos fortes segurando-lhe o corpo. O médico ordenou que lhe aumentasse a dosagem da anestesia. Cristiane tentou lutar contra a anestesia, mas sabia que era em vão. Não conseguiu manter os olhos abertos por muito tempo. Entregou-se ao sono, desejando que corresse tudo bem.
Quando conseguiu abrir os olhos, se viu novamente na sala escura que estivera antes, mas dessa vez a sala estava nítida. Móveis velhos, espalhados, poeira e acima de sua cabeça um enorme sino. Um campanário, não restava dúvida, estava na torre de uma igreja.
Cristiane se levantou encurvada. Não ficou totalmente ereta até sair debaixo do sino, onde sua cabeça estava protegida de colidir com o metal velho e empoeirado do sino. Olhou pela janela do campanário, estava escuro lá fora, mas dava para enxergar milhares de arvores e uma estradinha de terra. Cristiane nunca fora muito religiosa, mal lembrava a ultima vez em que estivera em uma igreja. Talvez tenha sido na sua infância, na sua primeira comunhão. Até para casar ela escolheu só o civil. Não era descrente de Deus, apenas se considerava sem tempo para pensar naquilo.
Viu um vulto passando por baixo dos móveis, talvez um rato, pensou. Mas como sabia que nada naqueles sonhos eram o que parecia, resolveu procurar uma saída daquele lugar o mais rápido possível. Foi até a porta e tentou abri-la, estava um pouco emperrada, mas com um pouco de força Cristiane conseguiu abrir, levando um banho de poeira da parte de cima da porta.
Cof!! Cof!!
A passagem da porta dava para um pequeno corredor que terminava em uma escada em espiral. Cristiane foi descendo lentamente a escada e começou a ouvir de longe uma voz entoando uma canção que ela não conseguiu distinguir qual seria. Parou no meio da escadaria. Não tinha certeza se deveria prosseguir ou não. Lembrou-se do primeiro sonho, onde ouvira risadas de crianças em um corredor e tempos depois estava sendo atacada por um bebê morto. A lembrança em sua mente lhe trouxe um mal estar. Pensou que iria vomitar, mas não o fez. Sabia que deveria prosseguir e procurar uma saída e lá embaixo seria melhor que permanecer encurralada na torre do sino. A cada degrau que descia a voz aumentava e um calafrio tomava conta de seu corpo. A parede de pedra estava fria. As falanges de seus dedos mutilados começaram a latejar. Nos sonhos, já estava cicatrizadas, embora ela soubesse que quando acordasse a ferida ainda estaria aberta.
Descia lentamente, parecia que iria levar anos para chegar ao final daquela escada, mas em menos de um minuto tinha alcançado o ultimo degrau. Cristiane estava agora em um pequeno cubículo. Atrás dela o lance de escadas em espiral. Do seu lado esquerda continuava a parede de pedra. Do lado direito havia uma abertura na parede com uma estátua de uma santa, em um manto azul e branco e os braços abertos. Porém a estatua estava quebrada, faltando uma parte da cabeça. Na frente dela uma porta de madeira que a separava da canção. Foi até a porta. A maçaneta tinha formato de uma cruz deitada. Cristiane levou a mão inteira até a maçaneta e girou, deixando a cruz em pé. Um barulho ecoou no cubículo atrás da médica e quando ela se virou viu a estátua da santa toda quebrada no chão. Indagou-se como aquela imagem havia caído. Ainda segurando a maçaneta em forma de cruz, empurrou a porta para frente, fazendo um forte rangido ao abrir, cessando o cântico que ouvia.
Estava agora no final de um vasto salão principal de uma igreja. Bancos de madeiras estavam enfileiras na direita e esquerda, deixando apenas um corredor com tapete vermelho entre os bancos, que dava para um altar. Na parede atrás do altar um enorme Jesus crucificado a encarava. Aos pés da imagem uma mulher com um manto preto cobrindo os cabelos que Cristiane deduziu que seria quem estava cantando segundos atrás.
– Quem está ai? – Perguntou a mulher, levantando a mão que portava uma faca na sua frente. Cristiane foi se aproximando devagar, levantando as mãos para pedir calma quando viu os olhos brancos da mulher na sua frente. Ela era cega.
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Paroníria
HorrorO renomado doutor Breno teve uma misteriosa morte enquanto dormia, ninguém sabe ao certo a causa da morte e várias suspeitas parecem cair sobre sua esposa Cristiane que começou a ter sonhos estranhos desde a morte do marido. Agora, Cristiane deve de...