Cap. 2

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POV: Lucy

Estou cansada por passar a semana arrumando a casa com meu pai e aguentando minha mãe de mau humor o dia todo. Ela sempre fica assim quando alguma negociação dá errado, passa o dia rabugenta.

Agora a noite resolvo dar uma volta de bicicleta, quero conhecer melhor a vizinhança. Moramos em um bairro no subúrbio, além de algumas casas e um parque, não tem muito o que se ver aqui. No próximo quarteirão tem algumas lojas e a minha escola. Passo por lá lentamente, acho que se eu vê-la a noite não vou ficar tão assustada pela manhã.

Também passo pelo parque, deito na grama e tento contar quantas constelações eu consigo nomear, e quando sinto que está esfriando volto pra casa. Hoje já é sexta feira e na segunda minhas aulas começam. O bom é que posso entrar junto com outros alunos novos, ou seja, várias pessoas estarão sentando sozinhas e sem um grupo de amigos, e quando elas se acomodarem ninguém vai prestar atenção na menina lendo na arquibancada com um walkman.

Quando volto pra casa, sinto o cheiro de comids italiana vindo da cozinha.

- Oi pai, tá fazendo o que para o jantar?

- Estou preparando um ei Fettuccine al gorgonzola, il mio amore! - Ele faz o pior sotaque italiano da história e continua a usar sua cozinha recém completada, ele usa todos seus novos utensílios pela primeira vez e parece deslumbrado, como uma criança brincando com um brinquedo novo que tanto queria.

Hoje eu vou escrever para o Pedro e a para a Maria Clara, meus únicos amigos brasileiros. Sei que eles não responderam minhas últimas cartas, mas vou escrever dizendo que estou bem e se eles não responderem vou entender isso como um ponto final em nossa breve e superficial amizade. Preciso admitir que não sou uma pessoa fácil de se conviver, principalmente quando tenho uma crise, mas tenho certeza de que tenho um péssimo gosto para amizades.

Entro no quarto e escrevo duas páginas para cada, o que não toma muito do meu tempo. Amanhã pegarei o ônibus para o centro e enviarei as cartas.
Depois do jantar nos sentamos para ver back to the Future mais uma vez antes que eu o devolva amanhã. Por um momento escuto a voz do garoto misterioso, será que deveria ter perguntado seu nome? Acabamos o filme e vamos dormir.

No dia seguinte eu levanto muito cedo, tento escolher uma roupa que combine com meu casaco novo e saio de casa. Toronto era muito bonita, passamos dois meses lá até conseguirmos comprar essa casa e depois nos mudamos para Vancouver, que consegue ser ainda mais encantadora. Pego um ônibus até o centro, tentando seguir o cronograma com todos os horários dos ônibus e um panfleto sobre como se localizar que ganhamos na imigração.

Hoje trouxe meus patins comigo dentro da minha mochila, quero aproveitar o meu último dia de férias. As ruas nessa época do ano tem uma certa beleza trágica, tudo brilha graças às chuvas de outono. As árvores estão nuas e as geadas já estão começando a se formar. Passo por várias lojas e vejo pessoas sorridentes com suas famílias fazendo compras para a volta às aulas, assim como eu. Quando chego no correio, me dirijo a pequena lojinha para comprar selos e enviar as cartas. Toda vez que venho no correio me sinto muito entusiasmada, não sei explicar bem o motivo. Sinto como se eu entrasse em uma sala, como a do buraco do coelho de Alice no país das maravilhas, com portais para o mundo tudo.

Chego no balcão e vejo o senhorzinho por a minha carta em uma caixa diferente, cartas enviadas para o Brasil são analisadas pela SNI( Sistema Nacional de Inteligência), o serviço de inteligência do Brasil, as cartas dessa caixinha devem passar por algum tipo de análise antes de serem enviadas aos remetentes. Tenho todo o cuidado de escrever sem dizer o motivo pelo qual nos mudamos, meu pai poderia ser deportado e preso por ter "fugido" da ditadura. Tento não pensar muito nisso, envio as cartas e saio. O caminho até a papelaria é tranquilo, entro na loja e compro vários papéis e canetas coloridas que nunca tinha visto antes.

Na volta, eu resolvo pegar um caminho diferente, já que tenho 3 horas até o meu ônibus passar. Caminho até a pista de patinação, faz anos que não patino e acho que estou meio enferrujada, eu costumava patinar no pátio do prédio que morávamos em Brasília. Entro na pista e demoro um pouco para adquirir equilíbrio, mas logo me sinto confortável com a sensação familiar dos patins e me lembro de casa.

Me distraio um pouco, quando olho para o meu relógio percebo que faltam 20 minutos para às 18h. Perdi o meu ônibus! Agora eu preciso achar uma cabine telefônica e ligar pra casa, tenho que avisar meu pai que chegarei mais tarde. Enquanto espero na fila para usar a cabine mais próxima eu leio o jornal Times, e procuro qualquer notícia que envolva o Brasil. Vejo que a economia está ruim (como sempre) e meus olhos fixam na única notícia relevante: *a lei da anistia foi aprovada*. Fico cega por um instante, com o coração disparado e prestes a parar ao mesmo tempo, sinto falta de ar.

Isso significa que eles foram soltos e que todas as suas queixas foram retiradas. Significa que eles estão livres. Os homens que mataram o meu tio e seus cúmplices que esconderam seu corpo, todos esses monstros estão livres. O fim da ditadura em tese já aconteceu, mas suas consequências serão eternas.

Quando chega minha vez, ligo para o meu pai o mais rápido possível, falo a ele que preciso que me busque na avenida principal. Meu pai nota minha respiração falha e desliga sem falar muito. A avenida fica a uns 15 minutos daqui, caminhar um pouco pode me ajudar a esfriar a cabeça e manter a calma, não quero tomar um comprimido.

Enquanto caminho eu penso na notícia, " É aprovada esse mês no Congresso Nacional Brasileiro o projeto de lei N° 6.638 que garante a anistia de todos que cometeram crimes políticos, fiscais ou sofreram restrições em virtude dos Atos Inconstitucionais". Sei que as notícias não são imediatas, essa lei deve ter sido aprovada a séculos atrás mas mesmo assim, para mim tudo está acontecendo agora.

Não sei como vou contar ao meu pai que os culpados pela morte do seu melhor amigo e irmão estão livres nesse exato momento. Continuo andando quando me dou conta de que meu rosto está molhado, tento não ceder as lágrimas e focar no que vou contar a meu pai.

Quando meu pai chega e parece preocupado, ele me abraça e me leva pro carro, eu me acalmo quando o carro começa a andar. Nós conversamos um pouco e quando dou a péssima notícia a ele, seu choro é abafado e cada lágrima parte o meu coração.

Não o vejo chorar a anos, dois anos atrás para ser exata. Ele chorou no enterro do tio Alex, ele chorou vendo o caixão coberto flores e vazio. Ele chorou ao ver que minha avó não apareceu pois tinha vergonha de seu filho. Ele chorou quando precisou consolar Augusto que estava aos prantos por ter perdido o amor de sua vida.
Lembro de me afastar de todos durante a cerimônia, eu precisava de um tempo para digerir. Sabia que minha mãe iria confortar meu pai, eles podem sempre contar um com o outro. Mas nada poderia me consolar naquele momento, não tinha forças para ajudar meu pai, muito menos tio Augusto. Tenho apenas memórias de sua voz doce, cantando Cazuza e me ensinando a fotografar. Que agora não passam de memórias.

Eu abraço meu pai no carro, e ficamos em silêncio por um momento. A única coisa que me vem à cabeça é a memória de estar no hospital sendo medicada, na noite que recebi a notícia da morte dele eu tive um ataque de pânico e fiquei inconsciente. Lembro de ter gritado e chorado muito, minha mãe também chorava já que ela também considerava Alex como um irmão. O resto do dia foi preenchido por um silêncio mortal e um sentimento insuportável de injustiça.

Preciso tomar um comprimido para dormir, e minha ainda cabeça dói.

Mapeando Estrelas (Completa/ Revisando) Onde histórias criam vida. Descubra agora