A tensão na mesa de jantar chega a ser palpável. Uma conversa simples rapidamente se transforma em um campo minado. Meu pai preparou um jantar especial para receber a minha mãe que chegou de viagem a algumas horas. Depois de algumas trocas de olhares, minha avó diz algo:-O peixe grelhado está divino, Caio. Gostaria que me passasse a receita mais tarde.- Meu pai abre um sorriso imenso, acreditando na possibilidade de uma conversa civilizada entre essas duas.
-Claro, mami. Eu fiz o que pude com os temperos que encontrei aqui. Se é que pode chamar "alho em pó" de tempero.- Ele solta uma risadinha. Realmente está se esforçando para deixar o clima mais leve. Sua preocupação volta com toda intensidade quando minha mãe dá continuidade a conversa:
- Nem me fale, sinto tanta falta de comer acarajé, moqueca, até mesmo uma feijoada.- Ela faz uma pausa como se conseguisse sentir o cheiro dos pratos que cítara.
- A parada obrigatória quando íamos pra Salvador era passar naquele restaurante na Barra. Parecem séculos atrás...- Digo enquanto relembro das nossas viagens em família para visitar minha avó materna. Ela sempre foi uma mulher muito rígida, tratava minha mãe com zelo, mas nunca com carinho. Minha mãe me disse uma vez que a mãe dela trabalhava como empregada em uma casa na parte baixa de Salvador, onde a classe alta se concentra na cidade. Ela me disse que a mãe da minha avó cuidava dos filhos dos patrões dessa mesma casa, e por isso não tinha tempo para cuidar da própria filha. Esse era o único emprego que uma mulher negra conseguiria em plena década de 40. Me dói pensar no tanto que elas já sofreram e sofrem.
Enquanto meus pais conversam sobre nossas viagens a Salvador, eu observo minha avó. Ela nunca pisou os pés na Bahia, vejo uma espécie de nojo estampado em seu rosto. Minha avó cresceu no Sul do país junto com sua família recém chegada da Espanha. Enquanto minha outra avó trabalhava para sobreviver, ela crescia em um latifúndio gigantesco. A realidade dela sempre foi muito diferente, isso a fez sentir que merecia tudo que ela tinha e que as outras pessoas também mereciam seus destinos.
-Eu prefiro uma culinária mais sofisticada, assim como meu filho. Por mais que essa não seja sua função, ele passa horas aprimorando suas habilidades na cozinha para agradar nosso paladares.- Ela põe uma garfada comedida do peixe grelhado na boca, fazendo uma expressão de prazer exagerado. Ela degusta a comida jogando um olhar rude para minha mãe.
- O quer dizer com isso?- Minha mãe a encara, botando os talheres sob o prato.
-Você sabe muito bem, Carla. Não importa se fores criada jogada à míngua, mas minha Luciana e o Caio não podem se virar sozinhos. Acha mesmo correto que enquanto um homem está em casa cozinhando e cuidando da filha, uma mulher casada esteja em outro estado fazendo seja lá o que?- Minha avó está determinada a transformar a minha mãe em vilã na frente do meu pai. Minha mãe a encara em silêncio, como um animal encara sua presa.
-MInha Luciana andando por aí desacompanhada, Caio cuidando da casa ao invés de trabalhar. Estou contente por ter feito essa visita, agora pude ver com meus próprios olhos como você cuida dessa família.
-Como eu cuido da minha família? Lucy é uma garota boa e responsável, e o Caio é um homem adulto que é completamente capaz de cuidar da casa e da própria filha. Aliás, a única incomodada aqui é você! - Minha mãe vocifera. Consigo ver a raiva acumulada por anos em seus olhos, prestes a transbordar.
- Eu tinha certeza de que isso seria uma má ideia.- Meu pai bufou do outro lado da mesa.
- Luciana deveria vir morar comigo na Espanha, com uma mãe responsável e presente, que põe a sua família como prioridade. Eu sabia que uma mulher como você não daria conta. - Os olhos de minha mãe enchem de lágrimas. Meu pai se levanta e bate as mãos na mesa, mas minha avó continua mantendo contato visual com minha mãe, observando sua armadura cair aos poucos. - Afinal, como uma mulata do gueto que se criou sozinha saberia o que é ser uma boa mãe e uma esposa decente?- Quando as duas primeiras lágrimas escorrem pelas bochechas da minha mãe, elas deixam um rastro brilhante muito nítido em sua pele escura. O suficiente para me fazer perder o controle.
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Mapeando Estrelas (Completa/ Revisando)
Teen FictionLucy é uma garota de 16 anos que nasceu no Brasil em um dos piores momentos possíveis: Ditadura Civil-Militar. Ela precisou lidar com medos, traumas e a perda do seu tio preferido. Por pior que fosse a sua situação, o emprego dos pais dela a permiti...