Capítulo 1

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São exatamente 19:08, eu estou sentada no banco do motorista do carro do meu pai, que, aliás, está fedendo a gasolina — o que é esperado já que algo estragou na tampa do abastecimento, deixando o cheiro do produto bem forte no interior do veículo—, enquanto escrevo uma "carta para mim mesma" nas notas do meu celular, após uma onda de inspiração me invadir.

Não que se precise de inspiração para escrever sobre a própria vida.

A questão é, eu estou lendo "O amor não é óbvio" da maravilhosa Elayne Baeta, enquanto observo o céu noturno e fico pensando, em como se repararmos bem, podemos perceber a diferença de profundidade entre as nuvens, as estrelas e a lua.

É incrível reparar como somos pequenos e o quanto o universo é gigante. Ainda mais com as nuvens paradas assim, é como se elas prendessem a respiração.

Pensando nisso agora, eu cheguei a conclusão de que gostaria de ser uma nuvem e poder ser e fazer algo realmente relevante no mundo. Talvez só prender a respiração e ignorar a atmosfera, o vento e a física.

— Abre a porta.

Ouço meu pai dizer impaciente, enquanto bate na janela do carro, me tirando totalmente da minha crise existencial.

Faço o que ele pede, saio do carro dando a volta para me sentar no banco do passageiro. Estamos há poucos minutos de casa, mas meu pai faz parecer séculos perto dele, e assim como as nuvens, eu prendo a respiração. Porque até respirar do lado do meu pai parece motivo suficiente para que tenhamos uma discussão. Talvez o meu oxigênio inicie uma combustão e toda a gasolina presente no ar faça esse carro explodir.

— Demorei?

Ele pergunta, arrumando o cinto de segurança.

— Nem percebi o tempo passar.

Respondo, após ajustar o cinto e salvar o que estava escrevendo.

Meu pai não tem o costume de olhar meu celular, eu tento acreditar que ele respeita a minha privacidade, mas acredito que ele tem medo do que pode descobrir. E sendo bem sincera, eu tenho ainda mais medo do que aconteceria se ele realmente descobrisse tudo que escrevo aqui.

Embora, caso algum dia ele crie uma conta no Twitter e pesquise pela minha melhor amiga, facilmente me encontrará. Eu não uso meu sobrenome no site, então ele não me acharia se procurasse por mim, porém minha melhor amiga usa e através da Yara seria fácil me achar.

Sendo bem sincera, eu me exponho demais na internet. Eu praticamente faço uso dela como um diário pessoal e por algum motivo as pessoas lá gostam de mim. Isso também pode ser apenas coisa da adolescência, considerando que eu ainda estou com 17 anos e nasci entre a geração que mais usa da tecnologia.

— A Helena deve estar nos esperando há um bom tempo, não sei como ela não ligou ainda.

Helena é a minha mãe, ela é um pouco controladora, então essa pequena demora pode fazer ela ligar sem parar para o meu pai até que ele chegue em casa com uma boa explicação para a demora.

— Quer que mande uma mensagem para ela?

Pergunto, sem olhar nos seus olhos. Uma das regras silenciosas que criei entre mim e meu pai é não fazer nenhum tipo de contato desnecessário.

— Não precisa, vamos logo.

Ele diz já dando partida no carro.

As ruas estão quase vazias, pois saímos há pouco tempo de uma quarentena, por isso muitos ainda não se sentem seguros para sair de casa. O medo é compreensível, considerando que o motivo do isolamento era um vírus altamente contagioso que causou uma pandemia mundial (sim, 2020 foi um ano bem complicado) e o vírus ainda pode estar circulando entre nós, mesmo que agora já estejamos todos vacinados.

Eu ainda não sei bem o que pensar sobre tudo. O isolamento social ferrou a minha cabeça de muitas formas e eu só sei que quero voltar logo para a minha antiga rotina.

— Chegamos.

Meu pai anuncia entrando na garagem. Desço do carro e dou uma última olhada no céu antes de entrar.

As nuvens agora estão vagando livremente pelo céu. Outra coisa que invejo nas nuvens, a liberdade.

— Finalmente. Pensei que houvesse achado outra família no caminho.

Helena reclamou assim que nos viu.

— Como se alguma outra família fosse querer a Sarah.

Meu pai fala com um riso esganiçado, que é acompanhado de uma gargalhada da minha mãe. Evito qualquer reação, porque sei que isso pode gerar consequências e tudo que quero é apenas sobreviver aqui, mas não posso negar que a brincadeira me incomodou.

Em outra família, essa piada poderia até ser vista apenas como uma piada, uma forma de zombaria, mas entre mim e meus pais essas brincadeiras sempre possuem um fundo amargo.

— Vocês acabaram de chegar da rua, tomem um banho que o jantar está quase pronto.

Antes que ela possa dizer mais alguma coisa, corro até o meu quarto para pegar alguma roupa confortável o bastante para não me irritar. Embora saiba que se o tecido não me irritar, meu pai com certeza o fará.

O jantar seguiu como sempre, eu sirvo meu prato, vou para o cômodo mais vazio possível e depois fico enrolando até a hora de deitar e tentar dormir, mas como sempre, fracasso nisso também.

Mais uma noite que estou completamente sem sono, absorta em pensamentos que querem me enterrar viva.

Minha mente sempre foi uma bagunça, como um museu bagunçado. É como se minhas memórias fossem obras de artes, espalhadas em desordem pelo museu. As memórias boas se misturam às ruins; as inacabadas ficam esquecidas dentro do atêlie trancado no fim do corredor; outras completamente sem cor e vida ficam no último corredor, onde as pessoas nunca entram por já estarem cansadas dos quadros tristes e azuis; algumas ficam propositalmente esquecidas no porão; e em destaque ficam aquelas que de tão incríveis te deixam sem fôlego.

Se um dia, um furacão passar por dentro da galleria Degli Uffizi fotografarei o resultado e transformar no retrato perfeito do meu interior.

Poético, mas também deprimente.

Apesar de que minha vida há anos vem sendo assim.

Eu sinceramente, não culpo meus pais por isso. Eles já erraram muito, mas eu também já errei. Além de que sou especialista em complicar a minha própria vida. Já o meu pai, é especialista em piorar ainda mais os problemas (isso quando ele não é o próprio problema).

Não sei dizer quando as coisas com o meu pai ficaram difíceis, mas me lembro de um homem diferente durante a minha infância.

Já a minha mãe eu não convivi durante a infância, ela se casou com o meu pai quando eu tinha 12 anos. Teoricamente, ela é minha "madrasta", mas odeio esse termo e considero ela a minha mãe, mesmo ela sendo do jeito dela. Helena quem me criou e me chamou de filha, quando nem mesmo a mulher da minha certidão de nascimento quis o lugar de minha mãe.

Minha mãe biológica eu nunca conheci, ela abandonou a mim e ao meu pai quando eu era pequena. Não me lembro de nada dela, e acho melhor assim, ninguém que já tenha conhecido ela tem algo bom para falar.

Eu também não fui uma boa pessoa no passado, já fiz muita coisa das quais me arrependo, mesmo que eu tenha apenas 17 anos. Talvez a maior delas seja ainda deixar meus pensamentos me sufocarem. Por isso, digo que o melhor agora é ir dormir e parar de pensar tanto. 

Arte, Café e Menta | ⚢︎ [Em Andamento]Onde histórias criam vida. Descubra agora