Parte 3

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O baile aconteceu no sábado seguinte. Filipa Albuquerque era uma mulher linda, refinada e gentil. Mas faltava algo nela. Sua fantasia era de rainha, o que lhe caía muito bem, claramente ela era alguém que nasceu em berço de ouro. E, apesar de ser simples em muitas coisas, sua aparência não negava o dinheiro que tinha. Joaquim não queria se aproximar dela a princípio, achando perda de tempo uma vez que nosso pai já teria feito minha cama com ela. Por isso, fiz questão de desobedecê-lo, coisa que quase nunca fazia, apenas para que Joaquim tivesse a chance de convencer a garota e então ter esse crédito com nosso pai. Pelo pouco que conversei com ela, ela parecia mais do que inclinada a fechar a parceria com nosso pai, Joaquim não teria muito trabalho.

A maioria das mulheres casadas estava fantasiada das mais aleatórias coisas ou pessoas. Desde uma rainha abacaxi, uma guerreira, uma índia, Carmem Miranda, e a bonequinha de luxo. E as solteiras, consequentemente as mais jovens, estavam de mulher gato, vi umas quatro assim. Uma ousou aparecer de dominatrix, o que me fez rir. Ela receberia o olhar de gelo do papai, com toda certeza. Professora, pastora, todas as fantasias sexys possíveis. Olhei-me no reflexo vendo minha fantasia de Romeu e me senti antiquado de repente. Quem se importa com personagens da literatura, não é mesmo?

Foi então que a vi, minha Julieta. Ela usava um vestido de época vermelho de mangas compridas e uma espécie de capa na parte de trás que balançava ao vento enquanto se movia. Seu rosto coberto parcialmente com uma máscara. Os cabelos, soltos em ondas negras que reluziam mesmo que a distância. Sua pele morena ressaltada pela cor do vestido. Ela era deslumbrante. Caminhei até ela com um sorriso de lado, jogando todo o charme possível, eu estava disposto a quebrar uma regra de ouro do meu pai naquela noite. Apenas uma pequena transgressão armada pelo destino. Ela era a Julieta, afinal, se isso não era um sinal do destino para que eu ficasse com ela naquela noite, nada mais seria.

— Julieta? Como tem passado?

— Romeu? Não tão bem como você, eu imagino. Achei que também fosse necessário usar máscaras — confessou olhando em volta e percebendo ser a única com uma máscara.

— Não é, neste caso, você pode tirar a sua. Estou ansioso em ver seu rosto.

Então ela riu. Olhou para mim e riu alto. Não entendi porque estava rindo, até que tirou a máscara e acabei rindo também.

— Mantenha distância de mim neste terraço, para sua segurança, senhor João Pedro — Laura alertou de maneira divertida.

— Somos provavelmente o casal mais famoso da literatura. Acho que podemos esquecer esse senhor, certo?

Observei cada curva de seu corpo neste vestido, seus seios ressaltados pelo decote apertado, a maquiagem leve, a cintura bem marcada. Laura era mesmo uma mulher incrivelmente atraente. Seu sorriso fácil, uma gentileza e doçura incomparáveis, e um senso do que é certo e errado perturbador. Nenhuma outra pessoa teria devolvido a bonificação que recebeu. Eu não teria.

— Se eu tivesse imaginado que aquele bônus faria isso com você, teria triplicado seu valor — brinquei, e percebi tarde demais que isso a incomodou.

— Não é uma fantasia cara, é de um brechó. Estava fedendo a mofo até esta tarde, para ser sincera. O seu dinheiro não fez isso. Eu o distribuí, como o senhor sugeriu. Então sinto lhe informar que você não me vestiu esta noite, assim como não vestirá noite nenhuma. Continuo não estando à sua altura. — Em seu tom não era possível notar a reprimenda, ela estava em seus olhos e em suas palavras, disfarçada, mas perceptível.

— Laura, sinto muito, eu não quis dizer...

— Quis sim. Passar bem, senhor Fagundes.

Merda! Virei o primeiro copo da noite e tentei me concentrar na festa que rolava, mas claro, não demorou dez minutos para eu ir atrás dela. A encontrei conversando com outra mulher e seu marido. Hortência e Ângelo, funcionários de longa data. E foi o que ouvi sair de seus lábios que me fez ficar parado, escondido ouvindo o que tinha a dizer.

— E foi isso, a cobra da Abigail me disse que o senhor Fagundes estava me chamando no terraço. Eu fui até lá e encontrei o senhor João Pedro. Mas bem, só depois descobri que o terraço é um lugar proibido. Era meu primeiro dia! O que ela pretendia?

Ao longe avistei Abigail, fantasiada de Cristo Redentor, mas em um vestido que deixava suas curvas à mostra. Ardilosa, esperta, decidi que ficaria de olho nela a partir dali.

— Boa noite, senhor, senhoras — cumprimentei aproximando-me deles. — Julieta, podemos ter uma palavra por um momento?

Hortência e Ângelo saíram rapidamente e fingi ignorar que Laura revirou os olhos impaciente.

— Então, Romeu e Julieta é sua obra preferida de Shakespeare? — perguntei para puxar assunto.

— Claro que não! Não faz sentido, eles sofrem o livro todo e depois morrem no final. Por que eu adoraria algo assim?

Aponto para sua fantasia.

— Como eu disse, foi o que achei no brechó.

— E imagino que não conheça nada de Shakespeare também — comentei em voz alta sem querer, e mais uma vez ali estava, o olhar enjoado e a indicação de que fui de novo um babaca.

— Não, pessoas pobres não sabem ler — respondeu de maneira debochada.

— Desculpe, eu não quis...

— Sim, você quis! Minha obra preferida de Shakespeare é A megera domada.

— Comédia, então. Na verdade, ela combina muito com você — respondi não dizendo exatamente a qual personagem me referia. Mas ela sabia.

— Achei que fosse dizer algo do tipo e não me importo. Catarina é minha diva — respondeu sorrindo, a irritação sumindo de seu semblante.

— Acho que tenho medo de você agora.

— Medo da minha inspiração? Pensei que tivesse medo de mim por teu tê-lo jogado deste terraço.

— O que é a vida sem riscos, não é mesmo?

Ela olhou algo atrás de mim e seu sorriso sumiu, sua expressão assumindo o mesmo tom preocupado e fechado de antes. E então, ela me pediu licença e se afastou. E nem teria sido necessário olhar para trás para saber que ela havia recebido o olhar de gelo do meu pai. Um aviso claríssimo para que se afastasse de mim.

A festa perdeu a graça depois disso. Dancei com algumas funcionárias, flertei um pouco, nunca quebrando a maldita regra. Mas meus olhos sempre buscavam a Julieta, sorrindo em um canto, comendo mais do que qualquer mulher presente aqui, admirando o céu estrelado ao invés da festa ao redor dela.

Laura era uma mulher tão linda! E havia algo nela, ela era diferente das outras. Como uma pedra preciosa bruta, valiosíssima, mas que precisava ser lapidada, descoberta, e eu não tinha o costume de deixar uma pedra preciosa escapar. Apenas por isso pedi ajuda a Hortência. Apenas por isso levei o baile que acontecia lá em cima até minha sala, apenas para nós dois. Apenas por isso insisti que ficasse quando percebeu que havia caído em uma armadilha e a convenci a dançar comigo.

— Shakespeare reviraria no túmulo se Romeu e Julieta não tivessem sua última dança — brinquei.

— Você sabe que serei demitida, não sabe? — respondeu em um tom triste que partiu meu coração.

— Não, e você não será. Por que seria?

— Seu pai acha que estou me atirando para cima de você.

— Considerando que foi exatamente o que fez no momento em que me conheceu, ele não está errado.

— Eu estava salvando a sua vida! — defendeu-se irritada.

— Então por que seria demitida? É só uma dança, Laura, recusá-la seria uma grosseria, e uma desfeita desnecessária. Eu a deixarei ir em seguida, prometo.

Relutante, ela tocou minha mão. E não cumpri minha promessa. Foram quatro músicas, treze minutos sentindo o cheiro gostoso do seu cabelo, sua textura macia em meu rosto. Quatro ritmos diferentes em que apenas nos balançamos porque não importava a dança em si, e sim tê-la em meus braços um pouco mais. Quatro vozes diferentes até que eu tivesse a coragem de tocar seu rosto e finalmente beijá-la.

E foi necessário um segundo, um único segundo quando nossos lábios se encontraram, para que eu me apaixonasse por ela.

Desde que errei - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora