As mãos

282 11 0
                                    

Era acostumada a acordar pela manhã em parcelas. O despertador tocava uma, duas, três vezes até que, vencida pelo som repetitivo, descia ao mundo. O corpo se desfazia do toque aveludado do cobertor com certo recentimento. A pele arrepiava, era Junho e o mais proximo de um inverno que ela conhecia tomava conta do ambiente.

Foi direto para o banho quente, massageava a cabeça que ja começava a trabalhar em mil ideias para depois deixar-se permanecer imóvel no fluxo da agua do chuveiro que ela havia comprado na semana passada.

Em meio a nevoa do vapor quente, deixou o banheiro rumo ao quarto a fim de vestir, não apenas a roupa, mas a armadura de mais um dia. A saia preta que planejara usar estava jogada amassada no canto esquerdo do quarto, como que acusando a noite que ela teve.

Era uma situação estranha deles, não havia nada a ser dito um para o outro, mas a tensão e a sensação pesada no ar em volta deles era palpavel e de cor vibrante. Tinha um sabor aspero e ao mesmo tempo suave na boca dela. Ela gostava de experimentar esse tipo de sabor.

Sorvia cada momento em que a tensão crescia como uma criança que se vê viciada em um sorvete. Por mais que se tenha, nunca parece suficiente e a vontade dominava cada vez mais espaço entre os pensamentos dela.

Ele, por outro lado era calmo. Comedido. Escritor por profissão e artista de alma. Mas não teve vez quando a fome voraz dela tomou conta deixou-se levar.

Ela tinha respiração sob controle,mas ela era pesada. Se aproximou aos poucos, queria olhar nos olhos dele mas não teve oportunidade, ele fechara, antecipando o momento. Dividiam o mesmo ar. Ela sentia o gosto do beijo dele antes dos labios tocarem-se.

Quando o beijo explodiu, tal qual a musica que estourava nos fones de ouvido, não existiu força capaz de freiar as sensações, os labios, sensações a flor da pele, suspiros roubados, ar compartilhado, gemidos distribuidos e os pingos de suor marcando o chão de tacos como provas e oferenda à algo acima do entendimento deles.

Recolheu a saia, alisou para tirar o pó, recostou na parede e as costas foram tomadas por um arrepio por conta da temperatura gelada. Dobrou a saia com esmero e a guardou na terceira gaveta do lado direito do guarda roupa como um pedido de desculpas. Ai ela começou a rir. Descontroladamente.

Deitou na cama olhando para o teto, rindo disse que a culpa era as mãos dele. Ela adorava as mãos dele. Mãos de escritor, artista. Era a praia e digasse de passagem, a tara dela.

Gostava de artistas. Só com eles sentia-se livre de verdade. Por uma noite ou algumas horas.

Elas não eram mãos apenas talentosas com palavras ou notas musicais, eram pesadas e leves, suaves e rudes, imperialistas. Eram mãos que tomavam da pele e da alma a verdade absoluta do sentir. Era por isso que sempre escolhia os escritores e artistas. Queria compartilhar a vontade de registrar as sensações, pessoas com consciencia de que o limite é apenas uma virgula no poema da vida.

Ela ria lembrando, das mãos que marcaram e passaram em seu corpo com tanta energia e vontade e verdade, timidas, na madrugada, rabiscando um bilhete de despedida deixado no criado mudo, amigo e confidente de tantos segredos.

Deixou-se inebriar os sentidos com as lembranças. Adormeceu em um sono leve.

Teorias do Imaginário #Wattys2016Onde histórias criam vida. Descubra agora